terça-feira, maio 24, 2005

Eisenstein, a 'Montagem de Atracções' e O Couraçado Potemkin

1. O que é a montagem?

A montagem é o acto de juntar, num todo coerente e orgânico, as imagens captadas desordenadamente durante a rodagem de um filme, proporcionando a narrativa através do encarreiramento dos diferentes planos e cenas na disposição desejada, privando as cenas e as sequências do seu carácter neutro e relacionando-as com o que as antecede e sucede. Umbilicalmente ligada ao início da filmagem com várias câmaras em diferentes ângulos, tem igualmente a função de cortar o que é dispensável, de modo a manter a fluidez do filme e a prender a atenção do espectador. O termo em si foi criado pelos cineastas formalistas soviéticos (ver ponto três), tendo sido adoptado pela indústria norte-americana em 1934, designando, nesse contexto, a sucessão de planos curtos que permitiam condensar cenas ou sequências que, por motivos de ordem narrativa, necessitavam mostrar muito em pouco tempo. Como todas as técnicas, tem um lado paradoxal: é tanto mais perfeita quanto menos o espectador nela reparar.

Tal como todas as técnicas cinematográficas, também a montagem se relaciona com o acto de ver. O cinema, pelo movimento que lhe está subjacente e pela possibilidade de ordenação das imagens, compreende um lado manipulador da visão, permitindo a acentuação de um aspecto em detrimentos de outros, e, logo, o enfatizar da subjectividade. Deste modo, a montagem contribuiu para o fim de um retrato objectivista do mundo no cinema, como acontecia nos filmes dos irmãos Lumière, pedaços naturalistas do quotidiano de diversas populações. Contudo, à época este foi um dos aspectos mais criticados ao cinema nas primeiras décadas da sua existência, por Jonathan Crary (1), por exemplo, porquanto esta subjectividade ancorada numa profusão de estímulos e de artifícios poderia redundar na tentativa de normalização dos indivíduos.

Existem três tipos básicos de montagem, subjacentes a todas as variações teóricas e práticas da mesma:

a) micro-montagem (a nível da escolha dos planos a serem utilizados);

b) a montagem própria ( na edição e junção dos planos); e

c) a macro-montagem (a junção de cenas e sequências num todo orgânico).

2. Biografia

Serguei Mikhailovich Eisenstein nasceu a 23 de Janeiro de 1898 em Riga, na Letónia. Fez os estudos básicos na sua cidade natal e estudou engenharia em São Petersburgo, embora a sua grande paixão fosse o teatro. No início de 1918 alista-se no Exército Vermelho, onde forma um grupo de teatro e participa numa unidade de agit prop (propaganda revolucionária). Após esta experiência, e depois de uma série de espectáculos por si encenados, entre os quais O Processo de Nikolai Gogol, entra no teatro Proletkult enquanto cenógrafo. Nesse grupo liga-se a Mayerhold, e intensifica o seu interesse pelo circo, pelo music-hall e pelo cinema burlesco americano. Inicia a sua carreira cinematográfica com A Greve (1924), a que se seguem O Couraçado Potemkin (1925), Outubro (1927) e A Linha Geral (1929 — também conhecido como O Velho e o Novo), todos eles filmes de propaganda e feitos com o financiamento e a complacência do regime comunista. O seu estado de graça termina, contudo, quando uma longa viagem à volta do mundo, empreendida a seguir à estreia de A Linha Geral, cria a impressão de que este não queria regressar. A esta impressão junta-se o progressivo repúdio estilístico da sua obra que, à época, chocava com os padrões entretanto adoptados do realismo social na URSS. A retracção pública perante os seus erros e o renegar de um filme do qual já tinha iniciado a rodagem, O Prado de Béjine (1936), permitiu-lhe filmar Alexandre Nevski (1938), filme que ao tratar as guerras travadas, durante o século XVIII, contra os invasores teutónicos, serviu de instigação propagandística à preparação contra a ameaça nazi e à vontade de resistir, independentemente dos enormes sacrifícios pessoais e comunitários que teriam de ser feitos. Esta recuperação de estatuto perante as forças estalinistas iria, contudo, desfalecer, visto que o dístico Ivan o Terrível (1945-46) contrapunha, a uma primeira parte enaltecedora dos faculdades conciliadoras de Estaline, utilizando para isso a figura do czar unificador da pátria russa, uma segunda parte abundante em criticas à tirania daquele, nomeadamente às purgas. Nunca conseguiu terminar a programada terceira parte da saga, mesmo tendo para isso conseguido obter a permissão pessoal de Estame, mediante a promessa de que corrigiria os ‘erros’ da segunda.Viria a falecer a 11 de Fevereiro de 1948, de ataque cardíaco. Deixou uma miríade de textos inéditos, que iriam ser publicados a partir da década de 50. O seu único livro publicado em vida foi Film Sense (1942), ainda hoje considerado seminal a nível de teorização cinematográfica.

3. Influências de Eisenstein

Até por questões espacio-temporais possibilitadoras de convivência e de troca de ideias, os formalistas soviéticos foram uma enorme influência para Eisenstein. Estes cunharam o termo por modo a enfatizarem uma analogia com os processos industriais de uma linha de montagem, uma metáfora tipicamente construtivista. De acordo com o cineasta Dziga Vertov, conhecido pelo filme O Homem da Câmara de Filmar (1928), todo o processo de criação era um acto de montagem, desde a observação até ao resultado final, na medida em que se tratava da junção de detalhes com o objectivo de criar “um homem mais perfeito que Adão”. A estas teorias juntam-se as de Kuleshov, defensor da montagem como principal meio de produzir, em cinema, uma resposta desejada, por intermédio da junção e do estabelecimento de uma relação entre fragmentos filmados em separado, desordenados e disjuntados, numa sequência coerente considerada vantajosa; a do seu discípulo Pudovkin, que sugeriu que certos mecanismos da montagem são a transposição para filme de actos comuns de percepção visual, tais como a atenção ao detalhe e a mudança de foco dentro de uma cena, mas advogou somente o uso dos mecanismos propícios à obtenção do efeito desejado; e, curiosamente, as teorias cinematográficas dos formalistas soviéticos da literatura, que expandiam os pontos de vista anteriores ao afirmarem que a forma transfigurava o material, perspectivando um filme como um sistema de componentes interrelacionados. Entre estes teóricos contam-se Boris Eikhenbaum, que separava a construção do enredo da montagem e argumentava que a última era semelhante à sintaxe na linguagem, tendo como função a articulação das imagens, e Yuri Tynyanov que, pelo contrário, comparava esta técnica à prosódia, na medida em que as imagens obedecem, em sua opinião, a equivalências rítmicas, com “saltos” rítmicos semelhantes aos que acontecem na passagem de um verso de um poema para outro. Semelhantes saltos e a comparação entre o verso/imagem precedente e procedente criam o significado total da obra.

Ao longo da sua carreira, o cineasta soviético é influenciado por estes nomes na medida em que, como Kuleshov, considera que a essência do cinema pode ser encontrada na relação ente as imagens e, assim, partilha da visão dos formalistas literários em relação à importância dos efeitos da justaposição e articulação das mesmas; e, como Vertov, acredita que a montagem vai para além da simples edição de imagens, dando extrema importância à análise do movimento e ao ritmo cinematográfico.

Serve este resumo das teorias de montagem soviética não só para situar num contexto teórico a produção e teoria de Sergei Eisenstein como para relevarcaracterísticas constantes à sua actividade, a saber:

- a montagem como estratégia para moldar o material à sua disposição;

- a sua capacidade de provocar associações e de prolongar efeitos no espectador;

- a possibilidade do cineasta se demorar no material que considera relevante e assim proporcionar um mais eficaz inculcamento dessa associações;

- e a conseguinte possibilidade de distanciamento do enredo, que, ao contrário do realismo, não dita forçosamente a forma da obra, mas antes estabelece com ela um jogo dinâmico que, em última instância, produz essas associações. A todas estas contribuições, os teóricos supra-citados juntaram outra: a noção da importância da fricção entre as imagens, origem da ‘montagem de atracções’, teoria constantemente alterada mas que constitui a base subjacente a todas as outras teorias postuladas pelo soviético.

4. A ‘Montagem de Atracções’

A ‘montagem de atracções’ não deve ser confundida com o habitual paralelismo entre diferentes acções que confluem num mesmo significado. Em concordância com a sua visão de que a estética do choque é a responsável pela eficácia do teatro e do cinema, as atracções são por si defmidas como momentos emocionalmente fortes que cortam a continuidade da obra e mudam o foco da atenção do público, provocando nele uma resposta emotiva. Mais propriamente, foi definida por Eisenstein como “todo o momento agressivo, i.e., todo o elemento que ilumina no espectador os sentidos ou a psicologia que influenciam toda a sua experiência — todo o elemento verificável e matematicamente calculado de modo a produzir choques emocionais numa ordem adequada dentro da totalidade — o único meio através do qual é possível tomar a conclusão ideológica fmal perceptível”(2). Ou seja, na relação entre as atracções e o enredo sobressaía o significado almejado. Como era fundamental que a resposta almejada fosse atingida, as associações provocadas por cada atracção não podiam ser deixadas ao acaso, sendo cuidadosamente escolhidas e preparadas enquanto meios para lograr fins. Era então, uma teoria que pode ser caracterizada como persuasiva ou manipuladora, conforme o ponto de vista adoptado. Por “conclusão ideológica final perceptível”, o leitor terá forço samente que entender o empenhamento na RevoluçãoBolchevique e no estabelecimento do regime político bolchevique. De facto, esta teoria começou a ser engendrada quando Eisenstein era encenador e director do Proletkultur, o órgão cultural oficial do regime soviético. Por “ordem adequada dentro da totalidade” pode e deve entender-se uma articulação das atracções com o resto da obra que, não obstante não se dever limitar a um enredo, deve manter uma coerência interna. Esta é, aliás, a causa das reformulações teóricas e práticas desta técnica, que não serão explicada neste trabalho, por motivos de espaço.

Um aspecto é, contudo, de extrema importância: o realizador em causa nunca teorizava no vazio. Assim, cada reformulação das suas ideias nunca se dava através de teorias a serem verificadas posteriormente, mas obedecia antes às experimentações dos filmes precedentes — por exemplo, Alexander Nevski possibilitou ao soviético, através do tratamento da relação entre montagem e música, elaborar os conceitos de ‘montagem vertical’ e ‘montagem polifónica’.

5. O Couraçado Potemkin

Lançado em 1925, O Couraçado Potemkin é hoje visto como a quintessência da arte de Eisenstein e o filme onde é mais visível a sua capacidade de articulação entre forma e mensagem desejada. O entusiasmo do Comité para a Educação e da Comissão do Jubileu da Revolução de 1905, primeira revolta popular contra o regime czarista, em relação a A Greve, obra anterior do cineasta, levaram estes organismos a convidá-lo a realizar um filme comemorativo desta revolução. Eisenstein, sempre pródigo em congeminar diferentes projectos, acabou por conceber uma série de cinco filmes que tratassem todo o percurso histórico que culminou nesta revolução, nomeadamente: 1) a guerra russo- japonesa; 2) o 9 de Janeiro e a vaga de greves; 3) as diversas insurreições camponesas; 4) a greve geral e a sua repressão. 5) a história de Krasnaya Presnaya. Quando problemas meteorológicos impediram o início das filmagens do segundo filme (que iria ser filmado primeiro), Eisenstein, em Odessa, reparou no impacte que poderia ter no espectador uma sequência filmada na escadaria da Opera da cidade. Trocou, imediatamente, a realização dos cinco frescos focados no ano de 1905 já planeados por uma história filmada nesse lugar, mas passada no mesmo ano. Assim nasceu O Couraçado Potemkin.

A nível de estrutura interna, e para simbolizar a data da Revolução, o filme divide-se em cinco partes: Homens e Larvas, Drama no Convés, Um Apelo dos Mortos, A Escadaria de Odessa e Encontro com o Esquadrão. Todos estes títulos resumem na perfeição o enredo do filme: a bordo do couraçado Potemkin, e por entre várias outras humilhações, é regularmente servida aos marinheiros comida podre. Um destes marinheiros, juntamente com um grupo de apoiantes (o que não significa que este seja o líder, pois nunca é retratado enquanto cabecilha de um movimento organizado de forma a atingir os fms que lhe impõe) decide incitar à rebelião quando, perante uma confrontação do estado da comida, o médico do navio continua a declará-la comestível. Os recalcitrantes serão isolados para fuzilamento, mas, no momento exacto, o motim alastra a todo o navio. Quando, num dos muitos conflitos físicos que ocorrem no navio, o marinheiro que iniciou a revolta é assassinado, os marinheiros que agora controlam o navio decidem homenagear o corpo, expondo-o ao povo da cidade mais próxima: Odessa. O povo comove-se com a visão e apoia, com manifestações, o motim, o que leva os cossacos a massacrem, na escadaria da Opera da cidade, os manifestantes. Em retaliação, o Potemkin bombardeia o edifício, forçando a derrota dos cossacos. De seguida, dá-se o encontro com várias outras embarcações militares que, ao contrário do que pensaram os marinheiros, vinham não para os atacar mas para se juntar a eles nas comemorações e nas lutas seguintes.

Importa estabelecer desde já um aspecto fundamental deste filme. Nele está presente um carácter realista, sobretudo nas cenas no dormitório dos marinheiros, que nunca constrange o filme. Aliás, este tem uma dimensão mitológica que não se coaduna com qualquer documentarismo, presente, por exemplo, na vitória final do Potemkin. Na realidade, isto não aconteceu, e o couraçado teve de fugir para águas romenas para evitar represálias do regime czarista, que se manteria no poder por mais doze anos. Contudo, este realismo possibilita um efeito ainda maior das atracções, pela fricção produzida entre as imagens.

Convém, por toda a preparação dada no inicio deste trabalho, começar pela exploração de duas atracções fulcrais. A primeira ocorre na primeira parte do filme, Homens e Larvas, e inclusivamente dá-lhe nome. Quando é mostrado ao médico do navio o pedaço de carne podre e este o examina, a câmara aproxima-se do naco de carne para revelar uma enorme quantidade de vermes que a corroem, potenciando, num simples plano, uma maior identificação perante o drama dos marinheiros, já que ninguém gostaria de comer algo nessas condições. Ressalve-se que essa passagem de um plano geral abarcando o médico, a carne e os marinheiros a um grande-plano da carne com os vermes não é feita através de um zoom, mas através da montagem. caracterizando-se assim como atracções. O título do capítulo justifica-se porque o médico fundamenta o alegado estado razoável da carne dizendo que o que os marinheiros vêem são larvas, que podem ser lavadas sem prejuízo da alimentação dos mesmos.

A outra grande atracção do filme é, obviamente, o carrinho de bebé que desliza, perante o olhar da mãe, pelos degraus da escadaria de Odessa, aquando do massacre dos manifestantes pelos cossacos. O efeito emocional é óbvio: está-se a punir quem menos culpa tem do que está a acontecer, e, pior, está-se a fazê-lo perante os olhos da própria mãe. Neste caso, o efeito é igualmente potenciado por duas técnicas cinematográficas distintas: a distensão temporal, que gera a tensão na assistência tradicionalmente conhecida por suspense, e a elipse, no momento do virar do carrinho e consequente morte do bebé, planos que são omitidos.Todas as atracções têm uma vincada conotação simbólica, que nos exemplos supra-citados é, respectivamente:

- os vermes enquanto a classe dirigente que está a corroer a nação e, logo, os seus habitantes ( simbolismo confirmado pelo plano paralelo à queda de três oficiais no mar durante os motins, onde se vê três vermes caindo da carne);

- e a morte do futuro de uma nação, através da morte do bebé.

Estes momentos têm igualmente o condão de estabelecer um jogo dinâmico com o enredo, intensificando e comentando a acção, e criando um confronto entre um enredo coerente e racional e um espectáculo com um cariz emocional.

Para além das atracções, um aspecto que ressalta de O Couraçado Potemkin é a representação dada aos revolucionários e aos opressores. Em primeiro lugar, ao longo das duas primeiras partes, os marinheiros são representados de uma maneira uniforme, não só a nível de comportamento e de bravura face à opressão, mas também fisicamente, sempre como fortes, jovens e musculados, exemplos de vitalidade e saúde cheias de possibilidades e de futuro. As suas roupas são iguais, e ostentam o uso característico do trabalho árduo. Contudo, nesta clara identificação de ‘classe’, sobressai sempre a individualidade de cada um dos marinheiros, que desempenham funções diferentes com vista ao bem comum. Pelo contrário, os oficiais do navio são sempre representados como seres ao serviço da tirania, sem vontade própria que não a que permita manter o seu poder, vestidos com os seus imaculados casacos com insígnias, prova de muito menos trabalho mas de muito maior recompensa. A figura mais grotesca é, ainda assim, a do sacerdote do couraçado, desgrenhado, sujo e demencial, que, quando tenta dissuadir os marinheiros do propósito de tomarem a embarcação, surge como uma representação de um poder religioso corrupto que deveria velar pelo bem-estar humano, mas que se rende ao conformismo. Em segundo lugar, quer o bebé dentro do carrinho, quer a mãe deste, quer a criança espezinhada pela multidão que é pegada ao colo pela sua mãe aparecem como presenças individuais, mostradas através de grandes planos reveladores de sentimentos e de emoção e de imagens da sua dimensão corpórea, enquanto o batalhão de soldados que carrega sobre eles é não mais do que um padrão gráfico de linhas a empreender um movimento inexorável mas massificado, a que acresce a sua transposição para o ecrã em imagens abertas e indicadoras de falta de personalidade, que quando permitem vislumbrar os rostos dos soldados retratam neles apenas frieza e indiferença.

Toda esta sequência é, então, uma representação da Revolução de 1905 enquanto conflito entre a humanidade e a inumanidade. Por todos os motivos atrás referidos, que redundam na visão maniqueísta típica de propaganda, é fácil conceber este filme como um objecto típico de agit—prop, de acordo com a seguinte definição de Trotsky: “O produto artístico é, antes de mais, um tractor que labora o psiquismo do espectador, de acordo com uma dada orientação de classe. (...) O cinema soviético deve rachar os crânios! Rachar os crânios, penetrá-los até à vitória e, actualmente, perante a ameaça de contaminação do espírito da revolução pelo espírito ‘quotidiano’ e pequeno-burguês, rachar mais do que nunca!”(3) Pelos vistos, terá conseguido inculcar nos espectadores esse espírito revolucionário, ao ponto de ser proibido em países como os Estados Unidos e a Inglaterra. Em jeito de curiosidade, diga-se que este efeito manipulador foi contraproducente na Dinamarca, onde a cena do fuzilamento dos marinheiros foi mudada e acoplada ao final do filme, de modo a dar a impressão de uma punição inevitável para quaisquer movimentos subversivos.

Por tudo isto, é necessário reconhecer o papel pioneiro desta obra e deste cineasta. Não só houve, pela primeira vez, um objecto indissociável dos acontecimentos políticos de uma época, como houve, sobretudo, um desejo de mudar as convicções das pessoas através do poder da imagem e do seu tratamento pictórico, musical, simbólico e emocional. O tema do trabalho não me possibilita falar da relação entre música e montagem, mas, vendo o quanto ambas estabelecem uma relação simbiótica para produzir o ritmo do filme, e o quanto a música não se limitava a sublinhar o que era mostrado, contribuindo também para a produção de significado, não é um exagero afirmar que podemos estar perante o primeiro cineasta verdadeiramente audiovisual. Em contrapartida, e correndo o risco de enveredar por um raciocínio demasiado rebuscado, há também a possibilidade de Eisenstein ter, indirectamente, dado origem ao chamado ‘cinema de autor’, tido, nessa perspectiva, como um cinema que pode não pretender manipular ou persuadir um público mas sim explanar uma determinada visão do mundo, independentemente da reacção popular às crenças e aos valores ai manifestado. A grande dádiva do soviético parece, então, ter sido a de alertar para a possibilidade de divulgação de valores e padrões sociais e políticos através do cinema, meio que, aliás, era acessível e frequentado pelas massas e, como tal, propício a uma interacção com o espectador. O Couraçado Potemkin, nesse aspecto, é simultaneamente o ponto zero de aplicação dessas teorias e a sua cristalização. Todo ele é uma atracção e tudo o que veio a seguir no cinema e na obra de Eisenstein deve-se a este filme. Assim se justifica o estudo desta obra e o estudo do cinema enquanto definidores do conceito actualmente conhecido como cultura visual, oitenta anos depois da estreia desta obra e pouco mais de cem anos depois do início do cinema.

Bibliografia

• BORDWELL, David: The Cinema of Eisenstein Londres: Harvard University Press, 1996 (2)

• GONZÁLEZ REQUEI Jésus: S.M. Eisenstein: lo que solicita ser escrito Madrid: Cátedra, 1992

• DUARTE, Fernando: A Montagem de Atracções in Celulóide n°219, Dezembro de 1975, pp. 1-4

• UZEL, Jean-Philippe: Le Montage: de la vision à l ‘áction in Cinemas vol.8, n°1, Outono de 1998, pp. 63-78

• BEYLOT, Pierre : S.M Eiseinstein : le chantre du montage-roi in CinemAction n° 72, 1994, pp.39-49 (3)

• MAKAVEJEV, Dusan : Eisenstein rouge ou noir in Positif n°176, Novembro de 1975, pp. 7-17

• LIEBMAN, Stuart : Que viva Eisenstein ? A life for the revolution in Cineaste n°4, Outono de 2001, pp.6-l2

• VÁRIOS AUTORES: As Folhas da Cinemateca: Sergei Eisenstein Ministério da Cultura/Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema, sfd

• VILLAIN, Dominique: Le Montage au Cinéma Paris : Cahiers du Cinéma, 1991(1)

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quarta-feira, maio 11, 2005

Bem-vindo, sr. Hulot

O parto de Playtime foi longo, doloroso e complicado. Projecto intrinsecamente pessoal, tomou nove anos da vida de Jacques Tati, entre a concepção e a estreia.A construção de uma réplica, à época futurista, de Paris gerou custos de produção que, no limite, levaram o argumentista, produtor, realizador e actor principal à falência: ainda que um sucesso, o filme necessitava obter receitas astronómicas para gerar retomo, retomo esse incompatível com o carácter idiossincrático da obra. Tudo isto, juntamente com as várias remontagens posteriores, deram a Playtime a reputação de filme falhado.

Cúmulo de todas as opiniões do realizador no que concerne à evolução da sociedade ocidental, Playtime tem as suas raízes no burlesco americano; mas somente as raízes, dado que a exploração formal e os seus pressupostos são diferentes. Por um lado, a crítica feita dirigia-se sobretudo aos costumes, e não à política de uma sociedade, como em Chaplin; ao mesmo tempo, a estética de Tati não era moldada por algo rígido como um programa, mas antes formava com as ideias um todo indissociável de forma e conteúdo — aqui, a influência do britânico era óbvia. Por outro lado, o objectivo principal dos seus gags era conduzir a um estado de bonomia e ao respectivo sorriso do espectador, de facto, o oposto da cacofonia delirante de outro expoente do género, os irmãos Marx. Mais especificamente, a estrutura cómica da obra do francês baseava-se na preparação intensiva e milimétrica dos números para que a piada surgisse do suspense e da previsibilidade.

Em teoria, este filme pode parecer um pouco anoréctico, pois é composto por apenas três sequências. Na primeira, dá-se aquilo a que certos críticos chamaram de “sinfonia do vidro, do aço e do betão”. A globalização é criticada através do estabelecimento da acção num edifício ultramoderno igual a tantos outros espalhados pelo mundo, visitado pelo Sr. Hulot na sua eterna busca de um emprego (E interessante explorar esta repetição nos filmes de Tati: o seu alter ego nunca encontra emprego pois este é tido como uma ferramenta social para a domesticação do Homem, e este recusa- se, na sua diferença e quase inconscientemente, a ser domesticado.).
Aqui, vê-se uma das críticas mais pungentes desta obra: o funcionalismo da arquitectura contemporânea tem como principio que apagar a individualidade do ser humano é positivo e mesmo desejável Contudo, o resultado é um ser humano que cada vez o é menos, e que com isso perde o interesse que frequentemente lhe é dado, como no caso de Hulot, pelo erro, que é quase sempre individual. O aspecto mais melancólico é a felicidade das senhoras inglesas face a electrodomésticos que visam apenas deixar mais tempo disponível para o trabalho.

Na segunda sequência, um restaurante high-tech abre as suas portas a uma multidão de burgueses, tão fascinados com a modernidade do espaço que esquecem a falta de conforto deste e ignoram a demolição progressiva do restaurante que vai ocorrendo à sua volta. E uma crítica a um estrato preocupado consigo mesmo, onde a vontade de aparecer se sobrepõe à convivialidade desejada e que convive, por sua vez, com um hedonismo quase vergonhoso, sendo também uma crítica a uma sociedade que depende demasiado de tecnologias que podem falhar a qualquer momento. é aqui que a música ocupa o lugar determinante que sempre ocupou na obra do realizador: é o barómetro da situação, movimentando-se com ela. Os momentos mais caóticos s acompanhados por uma música infernal, a um tempo jazzística e sinfónica, enquanto que o suspense é denunciado e aumenta através de crescendos musicais nos restantes momentos.

Na sequência final, a circulação de viaturas na cidade é transformada num gigante carrossel, através de movimentos circulares de uma extraordinária, portadores de uma dúvida sempiterna: para onde se dirige aquele fluxo interminável de pessoas, a todas as horas do dia? A inquietação é tripla: quiçá para suas casas, onde procuram recuperar a humanidade de que foram privadas?, quiçá para suas casas, onde o quotidiano é apenas uma mera e aterradora continuação do seu dia de trabalho?, quiçá em direcção a diversões acéfalas?...

Alguém disse sobre Chaplin que era o melhor bailarino da sua época. Talvez Tati devesse ser considerado o melhor coreógrafo da sua, e não um cineasta que actualmente é visto apenas por minorias e cuja reputação foi derreada pelos seus esforços hercúleos. Esta noção, paradoxal quando comparada com os sucessos e o prestigio dos seus filmes à época em que foram lançados, é demonstrativa das mudanças do mercado nas últimas décadas. Enquanto nos anos 60 cineastas como Bergman, Truffaut ou Feilini fascinavam as massas, hoje são tidos como produtos para nichos específicos. Infelizmente, o nicho de Tati é mesmo capaz de ser o mais específico de todos.

Não ver este filme é um crime cinematográfico.

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O Declínio do Cinema King

Há não muito tempo atrás, nos idos de 98 ou 99, o cinema King era o epicentro da cinéfilia lisboeta. Um lugar onde passava apenas quem estivesse realmente interessado nos filmes, com o acréscimo de, para além da muito interessante livraria da Assírio e Alvim, nada mais haver que pudesse retirar da cabeça das pessoas o motivo por que ali estavam, a razão de ser daquele espaço. Actualmente, o cinema King é apenas mais um cinema, perfeitamente integrado na estratégia comercial do grupo Medeia, e, pior do que isso, um espaço que fica com aquilo que o Monumental, o Nimas, o Freeport e o Alvaláxia não rentabilizariam.

Das últimas vezes que fui ao King, nada no ambiente me lembrava o clima efervescente daquela época. Deserto, este espaço faz lembrar, na melhor das hipóteses, o Sâo Jorge quando não tem o Festival do Cinema Francês ou o Indielisboa, na pior das hipóteses, o Quarteto, decrépito local frequentado por gente saudosa dos anos 70.

Com a abertura dos multiplexes supra-citados do mesmo grupo, a Medeia começou a jogar o jogo da Lusomundo. Nada contra a nível prático, pois poucas distribuidoras, pelo importante trabalho de exposição de cinema “alternativo” que desempenham há anos, merecem obter lucro da exposição de objectos artísticos. Se o fizerem de uma forma capitalista, onde aquilo que vende um pouco menos é pago por aquilo que vende um pouco mais, melhor. O que isso não justifica é a exibição de filmes dignos de respeito em espaços que os mercantilizam, que os tomam subalternos a toda a exploração económica subjacente a um espaço cuja rentabilização está dependente, entre outras coisas, da venda de pipocas. É dificil para um espectador mais atento não reparar na quantidade absurda de espectadores acidentais que povoam esses espaços, movidos, em muitos casos, pelas actividades a desempenhar num centro comercial. Em última instância, o bom-nome dos filmes é prejudicado, pois as pessoas acabam por vilipendiar aquilo que não estão preparadas para ver, e, logo, não compreendem. Ademais, isso gera casos estranhos: em Fevereiro, entrei numa sala do Alvaláxia e vi uma pessoa muito bem sentada a comer pipocas. O filme? Saraband de Ingmar Bergman...

Assim, o espaço do King apenas volta a ter a vida de antanho quando alguma iniciativa especial o ocupa. Devido ao facto de Portugal não as ter em número suficiente, o espaço encontra-se vazio a maior parte do tempo, dado que a Medeia opta por pôr a maior parte dos filmes importantes nos ainda recentes multiplexes. Face a um tempo em que nele estrearam “Tudo sobre a minha mãe” de Pedro Almodôvar, “A Pianista” de Michael Haneke, “Intimidade” de Patrice Chereau, “Ondas de Paixão” de Lars von Trier e “O Quarto do Filho” de Nanni Moretti, nos últimos tempos os mais interessantes e importantes filmes a estrear no King foram “Noite Escura” de João Canijo e “Os Tempos que Mudam” de André Téchiné, obras que, independentemente da sua qualidade, não só não se comparam em prestígio com as acima referidas, como também estavam em exibição noutros cinemas do grupo de Paulo Branco.

Lembram-se das tardes de Sábado em que imensas pessoas se encostavam frente aos placares do cinema da Avenida de Roma para ler diversas opiniões sobre os filmes que iam ver? Pois.., actualmente, devido ao número de salas existentes em Lisboa, estreiam quatro a sete filmes novos por semana, e muitos em centros comerciais. Alguma vez lá viram placares dedicados às mais diversas opiniões sobre as obras?... Quando é que foi a última vez que foram, apenas e só, ver um filme a um cinema?

Um Indielisboa todos os meses no King, s.f.f.

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