quinta-feira, agosto 31, 2006

Sete Filmes que Anseio Desesperadamente por Ver

Hangmen Also Die (1943) de Fritz Lang


Quai des Orfèvres (1947) de Henri-Georges Clouzot

The Lusty Men (1952) de Nicholas Ray

Le Notti di Cabiria (1957) de Federico Fellini

The Last Hurrah (1958) de John Ford

La Chinoise (1967) de Jean-Luc Godard

L'Armée des Ombres (1969) de Jean-Pierre Melville


Se já viram algum (ou todos), comentem, agucem-me a curiosidade

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segunda-feira, agosto 28, 2006

Os abestos de ponta prateada e as ervas daninhas


Na sua relação com a América, para onde fugiu aquando da Segunda Guerra Mundial, Douglas Sirk fez sempre figura de médico legista, a dissecar um ideal há muito morto e enterrado. Esse ideal, o de uma sociedade igualitária, próspera material e espiritualmente, pacífica externa e internamente, está morto, por exemplo, no brilhante e devastador Imitation of Life (1959), onde a temática do racismo, juntamente com o lado doloroso do sucesso desmedido, são um retrato da abertura de feridas que dificilmente poderão ser saradas. E está presente neste All That Heaven Allows (1955), pujante retrato, curiosamente, não das permissões celestiais dadas pelo título, mas sim de tudo aquilo que o céu terreno da “small town” norte-americana veda aos seus habitantes.

E aquele technicolor, e o azul da escuridão…

Cary Scott (excelente Jane Wyman) é uma viúva da cidade de Stoningham, esbelta e mãe de dois filhos. Sedenta de amor, apaixona-se por Ron Kirby (inadjéctivavel Rock Hudson), um exemplo concreto da Liberdade, tranquilo na assumpção da sua maneira de ser e dos seus objectivos – o par já se tinha encontrado, no “menor” Magnificent Obsession (1954), também realizado pelo alemão. Mas Cary é cobarde. A pressão dos seus pares, juntamente com a forte pressão dos seus filhos, Ned e Kay, faz desabar o sonho de ambos, uma vida pacata num remodelado moinho. Por um lado, a cidade é um ninho de víboras, prontas a sugar o sangue das suas vítimas se isso der motivo de conversa para mais umas semanas. Por outro, os seus filhos, o patriarcal Ned e a intelectual Kay, sempre pronta a mostrar bom senso mas presa ao que os outros dizem, castram todos os seus movimentos menos convencionais.

E depois há aquele technicolor, e a beleza das folhas das árvores…

Na sua essência, All That Heaven Allows é a história de uma mulher que, entre o despoletar da sua independência e a sua concretização plena enquanto ser humano, cede à pressão dos seus pares (incluindo a da sua melhor amiga, Sara Warren, interpretada pela excelsa Agnes Moorhead – Citizen Kane, 1941 e The Magnificent Ambersons, 1942) e aceita ser emparedada viva, à maneira egípcia, como um dos pertences do seu falecido marido. Mas é um filme que, exceptuando a aparição regular de um veado a marcar a vida no meio do manto de neve, se desenvolve através de um pudor extremo e algo raro na obra do cineasta. Por aqui, não existe a explosão sentimental do final de Imitation of Life, nem tão pouco o início desesperado ou o final apoteótico na sala do tribunal de Written in The Wind (1956). Inclusivamente, em certos momentos, o pudor eleva-se ao ponto de a protagonista ser mostrada a sofrer de costas para a câmara. Com a rejeição do amor limitado que a sociedade permite a alguém como Cary, vem uma deliciosa inversão de papéis: com o acidente quase mortal de Ron, é Cary que tem de se impor e de ser independente. Nesse momento, como noutra lindíssima história de amor, há uma aurora. E este torna-se também um filme lindíssimo sobre um amor, uma árvore que, para crescer, teve de deixar de se preocupar com ervas daninhas. Lindíssimo.

Como se tudo isto não bastasse, há a mais perfeita utilização do technicolor.

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sexta-feira, agosto 25, 2006

Inquietação das três da manhã


Quem me conhece, sabe que sou fanático por futebol. Mas uma coisa tenho de perguntar, perante a afirmação sucessiva de que uma ida ao cinema é cara: como é que um país em que, todos os fins-de-semana, perto de oitenta mil pessoas (segundo cálculos meus, que juntam as assistências médias dos três grandes às assistências dos chamados clubes "pequenos") gastam entre dez a cinquenta euros para ver um jogo de futebol - fora cotas mensais de sócio - , podem dizer que um bilhete de cinema é caro?

Qual é a vossa opinião?

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sábado, agosto 12, 2006

Ensaio - Era Uma Vez na América - 6. Conclusão



Once Upon a Time in America é visto de maneira diferente por ter sido o último filme de Sergio Leone. A morte do cineasta, juntamente com o desenvolvimento ao ponto da súmula das temáticas que, em parte, já enformavam Once Upon a Time in The West (1966) e Giú la Testa/ Fistful of Dynamite (1972), exponenciou o seu carácter de súmula de obsessões. Por outro lado, cristaliza também uma postura em relação à América, digna do panteão de visões de um território mítico e universal feitas por quem lhe é exterior e onde se incluem, por exemplo, obras de Franz Kafka e de Boris Vian. Por último, a sua vertente meta-cinematográfica, patente na utilização dos códigos de géneros cinematográficos com vista não apenas a uma localização num património fílmico, mas a uma sentida homenagem, encontra na obra uma concretização exemplar. Com Once Upon a Time in América Leone cimentou-se, a par com os cineastas da Nouvelle Vague francesa, na modernidade cinematográfica, onde a matriz formal do cinema clássica era insuficiente e inapropriada para dar conta não só dos dilemas da vida moderna como da imensa influência que o passado cinematográfico deixou. Once Upon a time in America ergue-se, assim, como pedra de toque da modernidade do cinema, e como obra máxima na carreira do cineasta italiano.

7. Filmografia

LEONE, Sérgio: Once Upon a Time in America, Warner Home Vídeo, 2003

8. Bibliografia
AGUILAR, Carlos: Sergio Leone, Ediciones Cátedra, colecção Signo e Imagen/ Cineastas, 2ª edição, Madrid, 1999

FRAYLING, Christopher: Sérgio Leone – Something to do With Death, Faber and Faber, 1ª edição, Londres, 2000, pp.379-463
RODRIGUES, António: “Once Upon a Time in América” in Folhas da Cinemateca, pasta 59

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Ensaio - Era Uma Vez na América - 5. A Marca Autoral




Convém referir que as relações entre espaço, pessoa e memória encontram na estrutura do filme uma eficaz representação, na medida em que esta abre espaço para a intersecção de diversos momentos cronológicos diferentes, frequentemente fragmentados – a única excepção é o episódio da infância do grupo, mostrado linearmente e de uma só vez. Por outras palavras, os três episódios que compõem a obra -1922, infância; 1933, dissolução do grupo; e 1968, futuro?), com a excepção acima referida, interrompem-se ao sabor das associações feitas pela memória de Noodles, num esquema narrativo que lembra, por exemplo, Muriel ou Le Temps du Retour (1966) de Alain Resnais. Daí a extrema importância dos raccords, que normalmente aliam uma eficácia extrema a uma simplicidade extraordinária. O melhor exemplo, entre muitos outros, é o da lâmpada do salão de ópio que se transforma na iluminação da rua onde estão os corpos de Patsy, Dominic e, presumivelmente, Max.

No seu tempo, o filme foi acusado de falta de ritmo. No entanto, nada é mais apropriado a um filme feito, note-se, por um europeu, porquanto tal lentidão, aliada à temática, possibilita uma maior apreensão das motivações e acções das personagens, bem como a apreensão, por parte do espectador, dos códigos que fazem o género. Aliás, os westerns de Sérgio Leone mantêm uma lentidão semelhante, embora menos vincada, no que permite, entre outras coisas, ver a relação de Once Upon a Time in America com a restante filmografia de Sergio Leone. Neste filme, marcam também presença os grandes planos extremos que caracterizam o “estilo Leone”, numa cartografia do rosto humano que não só caracteriza de imediato as personagens, como demonstra a sua função dentro dos códigos da narrativa – atente-se na expressão dos homens que, logo na abertura da obra, têm por missão assassinar a personagem principal. Do mesmo modo, repare-se no uso da profundidade de campo na descrição espacial do cenário, como pode ser visto na sequência em que o jovem Noodles persegue Deborah através de uma rua do Lower East Side preenchida por judeus ortodoxos, ou na estrutura em catedral do salão de ópio. Se a qualidade de Once Upon a Time in America reside primordialmente no conteúdo, tal não se deve à falta de sofisticação estética, mas antes ao carácter superlativo do primeiro. O elemento que agrega ambas as dimensões é a música de Ennio Morricone, que, na nostalgia da flauta de pan, junta o emocional, o sensorial e o cerebral.

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Pouco romance, muitos cigarros


Sobre Romance e Cigarros, apenas há a dizer que é mau. Muito mau mesmo.

A terceira obra na realização de John Turturro (actor-fétiche de Spike Lee), é um musical falhado sobre uma família suburbana em acelerado processo de desintegração, polvilhado de requintes escusados e enjoativos de escatologia, que desperdiça um leque notável de actores (James Gandolfini, Susan Sarandon, Kate Winslet escandalosamente desaproveitada e, o único que cumpre os serviços mínimos, Christopher Walken) em personagens sem grande espessura. Pior que isso, a filiação na obra dos irmãos Coen, em termos de estética, de tipologia e excentricidade das personagens, mostra que é toda a estética destes que está em queda. Afinal, o problema é mais grave que os filmes mais recentes dos últimos não prestarem. Este também não presta.

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domingo, agosto 06, 2006

Ensaio - Era Uma Vez na América - 4. Sonhos Opiáceos


Até aqui, todo o trabalho se ancorou na perspectiva de que o segmento de 1968 aconteceu realmente. Contudo, isso seria descurar a importância dos momentos passados no salão de ópio, cuja relevância advém, inclusivamente, de abrirem e fecharem o filme. De facto, o ópio é conhecido, entre a comunidade chinesa, por ser um narcótico capaz de provocar visões do futuro. Esse enquadramento por parte das cenas no salão de ópio, bem, como o muito discutido sorriso final, em grande plano extremo, de Robert De Niro “sob influência”, geram a hipótese de tal segmento mais não ser do que um sonho narcótico. A principal ordem de motivos a justificar esta visão é de cariz lógico. Seria improvável que Noodles, por muito isolado do mundo que estivesse, desconhecesse o rosto do Secretário Bailey, na ribalta depois de um escândalo financeiro parecido com o de Jimmy Hoffa (líder sindical que apareceu morto depois de um escândalo financeiro envolvendo um sindicato). Do mesmo modo, é curioso como não só Noodles escolhe fugir para Buffalo, cidade relativamente próxima de Nova Iorque, num país com cinco mil quilómetros de distância de uma costa a outra, assim como o facto de, no seu regresso, este lidar apenas com personagens que já conhecia anteriormente - factores que, juntos, demonstram o pensamento rasteiro da personagem. Seguindo esta interpretação, o diálogo final entre os dois amigos é a forma de Noodles se prender, voluntariamente, ao passado que lhe escapou. Como o próprio Leone afirmou, ninguém mata as suas próprias memórias. Às 21h 39m, Noodles ainda tem algo a perder. Na realidade, esta hora nunca saiu do presente cronológico da acção, em 1933.

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Ensaio - Era Uma Vez Na América - 3. A Metafísica do Tempo




Quando Noodles sai da prisão, guarda em si a esperança de um mundo cristalizado. Espera encontrar a mesma organização criminal pueril, o mesmo objecto do desejo infantil em Deborah, as dificuldades do costume. Encontra antes uma organização em crescimento, uma amada trabalhando para o estrelato e um mundo de prosperidade criminal. O choque entre o desejado e o encontrado é semelhante ao confronto acima referido entre a visão tida por Leone da América e a sua experiência real com americanos. Essencialmente, o problema reside no facto de Noodles não ter mudado, ao contrário do que aconteceu com Max e Deborah. O percurso encetado pela personagem principal, culminado na denúncia, é então, uma tentativa desesperada de manutenção do estado de coisas. No entanto, Leone opta, na tradição do gangster movie, por dar laivos de tragédia á história, que residem no efeito da passagem do tempo nas personagens e nas relações entre elas. Para Noodles, essa passagem acarreta perda, na medida em que demonstra a impossibilidade do regresso ao paraíso perdido da sua infância, o que traz consigo o fim da amizade entre Max e Noodles e a impossibilidade da concretização do amor por Deborah.

Na visão de Leone, outro resultado da passagem do tempo é o fim da ideia de sonho americano. A ascensão pessoal de um indivíduo em direcção ao bem-estar e à importância no seio de uma comunidade foi substituída pela organização hierárquica da sociedade, baseada na violência e no monopólio económico. A decadência espiritual de Max quando este é reencontrado por Noodles em 1968 mostra isso: quem está no poder é um gangster, que, ademais, tratou de roubar todos os desejos do melhor amigo, e entregar-se à corrupção em lugares de responsabilidade. Não por acaso, Noodles sempre foi contra essa associação entre o seu grupo e os ricos e poderosos, preferindo a vivência de “vigarista de bairro”. Ele próprio afirma: “I like the stink of the streets. It opens up my lungs.” Igualmente propositada é a forma como, no final do filme, God Bless America, tema escrito por Irving Berlin para exacerbar as qualidades da América em véspera da entrada norte-americana na Primeira Guerra Mundial, adquire um tom irónico e até triste.

Ainda assim, as referências históricas literais ao passado dos Estados Unidos são mantidas ao mínimo, e o próprio conflito sindical resolvido com a ajuda do grupo é descrito em termos muito gerais. Símbolos como o relógio de ouro ou o número 35, o número de anos de ausência de Noodles escrito num dos lados do camião do lixo para onde Max supostamente salta tratam, ao invés, de estender a noção de perda associada ao tempo a uma dimensão metafísica. Todos os intervenientes aparecem em 1968 cansados, desanimados e, com a excepção de Deborah e Max, que iniciaram uma relação, todas perderam o contacto entre si. Todos perderam algo com o passar dos anos, seja saúde, bem-estar económico ou tranquilidade de consciência. O escape para esta situação é, então, a memória, o espaço de protecção por excelência das personagens. A luta de Noodles, sobretudo, é a de não perder essas memórias com o que descobre em 1968. Para isso, precisa inclusivamente de não ver o escroque diante de si agora chamado Mr. Bailey como o seu amigo de infância. Perante a cena em que visita Deborah nos bastidores do teatro onde esta representa Shakespeare e onde a frase “Age cannot wither her” aparece como singular descrição da forma como um vê o outro (a actriz Elizabeth McGovern não aparece envelhecida); até se dúvida da sua capacidade em matar o seu passado. Morreria, tal como parte de si morreu quando teve de fugir. “I’ve been going to bed early [for thirty-five years]” é uma frase de reminiscências “proustianas” sintomáticas (Em Busca do Tempo Perdido abre com a frase “Durante muito tempo, deitei-me cedo.”).

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sábado, agosto 05, 2006

E agora, para algo bastante parecido - ii

Também já está disponível no Cinéfilos.tv a ficha de Os Amantes Regulares, que estreia no próximo dia 10 de Agosto. Vejam o filme, que este bem merece. Se quiserem, leiam também o texto. Obrigado.

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sexta-feira, agosto 04, 2006

E agora, para algo bastante parecido - i

Comecei esta semana a colaborar com o site Cinéfilos.tv. Para a minha primeira crítica, consultar no site a ficha de Miami Vice. Obrigado.

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quinta-feira, agosto 03, 2006

Ensaio - Era Uma Vez na América - 2. O Filme de Gansgsters


Datado sobretudo da época da Grande Depressão, onde o seu realismo visceral era um contraponto ao escapismo presente no musical e na comédia "screwball", o filme de gangsters retratava um imaginário urbano onde este era alguém que, para cumprir as promessas do sonho americano, recorria ao crime e à violência, acabando frequentemente vergado sobre o peso dos seus actos e sobre as consequências que estes acarretam. O lado trágico destes anti-heróis, gente empreendedora e hábil presa às condicionantes do seu tempo, provocava a empatia dos espectadores provenientes das classes mais desfavorecidas, que na década de trinta constituíam a maioria dos espectadores cinematográficos.

Escrever sobre Sergio Leone é também escrever sobre uma ideia de América, que, neste caso específico, se relaciona com este género cinematográfico, tanto quanto com a literatura conhecida como pulp fiction. O próprio título assim indica, ao lembrar a frase inicial de fábulas, contos de fadas e outras fantasias, estabelecendo uma relação entre o real e o imaginário parecida com a das ficções supra-citadas, que são, na sua essência, contos morais. Tendo crescido no marasmo da governação fascista em Itália e na pobreza gerada pela Segunda Guerra Mundial, Leone encarava a América que apreendia através de livros e filmes como, simultaneamente, um escape das limitações do seu quotidiano e uma promessa de um futuro melhor. O seu contacto com americanos, aquando da libertação da Itália do jugo nazi em 1944, apagou definitivamente esta visão. Instalou-se a desilusão, gerada por episódios de tráfico de tabaco e assédio ás mulheres italianas por parte dos soldados americanos, mas não se apagou o fascínio. A visão que Leone tem da América é, então, um misto de real e de ilusão, um misto de mito e de História que redunda, formalmente, numa materialização de um universo que deriva de profunda investigação histórica, de conhecimento das representações artísticas e de uma ideologia e de uma vivência europeias, a que não são alheios os ideais marxistas. Como tal, Leone utiliza vários códigos do género nesta sua obra, a saber, entre outros: a era da “Lei Seca”, retratada por William Wellman ou Mervin LeRoy; o aspecto negocial capitalista que o crime organizado adquiriu ao longo dessa década; a loura platinada, símbolo sexual do poder dos anti-heróis; ou a omnipresença das metralhadoras Thompson, arma por excelência do criminoso dos anos trinta. Reforça, inclusivamente, o mero código, ao incluir citações directas de vários clássicos do género, nomeadamente o regresso do herói ao seu bairro de infância (Angels With Dirty Faces – Michael Curtiz, 1938), a relação de Noodles com Deborah (evocativa da relação de Eddie Bartlett com Jean Sherman em The Roaring Twenties – Raoul Walsh, 1939), ou a abertura de Little Caeser (Mervyn LeRoy, 1930), onde se lê “For they that take on the sword shall perish by the sword”, numa rima com a inscrição presente no mausoléu dos ex-companheiros de Noodles e na prisão para onde este é enviado, onde se lê “Your youngest and strongest will fall by the sword”. Contudo, a estes elementos cinematográficos junta-se uma elaboradíssima pesquisa, que incluiu não só a leitura de livros sobre o período, como a angariação de uma enorme quantidade de fotografias e a inspiração retirada de quadros de Edward Hopper, de ilustrações de Norman Rockwell ou dos desenhos e quadros de Reginald Marsh, tanto quanto a reconstituição de cenários em estúdios europeus, bem como a utilização de cenários no Velho Continente para emular os espaços existentes na Nova Iorque dos anos 20 e 30.

O que faz de Once Upon a Time in America uma obra seminal é a forma como a memória cinéfila e a memória histórica se fundem para a concretização de um objecto puramente cinematográfico. Por outras palavras, a História mais não é do que uma ferramenta para a fixação de um imaginário que lhe é externo, da mesma forma que a História foi primeiramente apreendida por Leone e por toda uma geração de cinéfilos europeus através dos filmes norte-americanos observados. É, então, uma relação simbiótica a exercida entre o cinema e a História neste contexto particular, indo beber também à experiência do cineasta. No fundo, é como se Leone concordasse com George Steiner, quando este, no seu No Castelo do Barba-Azul[2], escreve: “Não é o passado literal que nos governa, excepto, talvez, numa acepção biológica. São as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construções simbólicas do passado encontram-se impressas, quase à maneira de informações genética na nossa sensibilidade.” Em Once Upon a Time in America, genética e imagética do passado unem-se exemplarmente. Nada de surpreendente, tendo em conta que o passado e os seus efeitos são o cerne da obra.

[2] STEINER, George: No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas Para a Redefinição da Cultura, Relógio de Água, colecção Antropos, tradução de Miguel Serras Pereira, Sta. Maria da Feira, 1992, pp.13

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Ensaio - Era Uma Vez na América - 1. Introdução



David “Noodles” Aaronson é um pequeno aspirante a gangster que, juntamente com os seus amigos Patsy, Cockeye e Dominic, faz uns biscates para Bugsy, o chefe do crime no Lower East Side nova-iorquino no início dos anos 20. Numa tentativa de roubo falhada, conhece Max, que imediatamente se torna o seu melhor amigo. A traição do grupo a Bugsy, fomentada pela ambição desmedida de Max e acarretando o assassinato de Dominic, acaba na morte do primeiro às mãos de Noodles, que é subsequentemente preso durante nove anos. Quando regressa, a Lei Seca (proibição legal de venda ou consumo de bebidas alcoólicas) aproxima-se do seu fim. Noodles sente-se desiludido com o rumo mercantilista que o seu grupo progressivamente tomou, e, perante o plano irrealista, pensado por Max, para assaltar a Reserva Federal Americana, denuncia o grupo às autoridades, estando inclusivamente disposto a ser encarcerado com o resto dos amigos. É espancado por Max, e por isso não está presente quando os amigos são mortos. Foge durante trinta e cinco anos, regressando apenas devido a um misterioso convite.

Este é o mais fiel resumo possível da intriga de Once Upon a Time in America[1], filme final de Sergio Leone, estreado em 1984, contado liminar e linearmente. É um resumo incompleto, pois deixa de fora factores como a complexa organização temporal da obra, bem como a sua filiação no filme de gangsters, as considerações sobre a natureza do Tempo e a intricada visão do cineasta italiano do património cinematográfico norte-americano. Não por acaso, serão esses os moldes deste trabalho, porquanto é na relação entre tais factores que se joga a identidade e a significação desta seminal obra da década de 80 do século XX.

(Trabalho escrito em seis partes, devido à sua extensão)
[1] Todos os filmes referidos neste trabalho aparecerão com o seu título original.

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