quarta-feira, maio 11, 2005

Bem-vindo, sr. Hulot

O parto de Playtime foi longo, doloroso e complicado. Projecto intrinsecamente pessoal, tomou nove anos da vida de Jacques Tati, entre a concepção e a estreia.A construção de uma réplica, à época futurista, de Paris gerou custos de produção que, no limite, levaram o argumentista, produtor, realizador e actor principal à falência: ainda que um sucesso, o filme necessitava obter receitas astronómicas para gerar retomo, retomo esse incompatível com o carácter idiossincrático da obra. Tudo isto, juntamente com as várias remontagens posteriores, deram a Playtime a reputação de filme falhado.

Cúmulo de todas as opiniões do realizador no que concerne à evolução da sociedade ocidental, Playtime tem as suas raízes no burlesco americano; mas somente as raízes, dado que a exploração formal e os seus pressupostos são diferentes. Por um lado, a crítica feita dirigia-se sobretudo aos costumes, e não à política de uma sociedade, como em Chaplin; ao mesmo tempo, a estética de Tati não era moldada por algo rígido como um programa, mas antes formava com as ideias um todo indissociável de forma e conteúdo — aqui, a influência do britânico era óbvia. Por outro lado, o objectivo principal dos seus gags era conduzir a um estado de bonomia e ao respectivo sorriso do espectador, de facto, o oposto da cacofonia delirante de outro expoente do género, os irmãos Marx. Mais especificamente, a estrutura cómica da obra do francês baseava-se na preparação intensiva e milimétrica dos números para que a piada surgisse do suspense e da previsibilidade.

Em teoria, este filme pode parecer um pouco anoréctico, pois é composto por apenas três sequências. Na primeira, dá-se aquilo a que certos críticos chamaram de “sinfonia do vidro, do aço e do betão”. A globalização é criticada através do estabelecimento da acção num edifício ultramoderno igual a tantos outros espalhados pelo mundo, visitado pelo Sr. Hulot na sua eterna busca de um emprego (E interessante explorar esta repetição nos filmes de Tati: o seu alter ego nunca encontra emprego pois este é tido como uma ferramenta social para a domesticação do Homem, e este recusa- se, na sua diferença e quase inconscientemente, a ser domesticado.).
Aqui, vê-se uma das críticas mais pungentes desta obra: o funcionalismo da arquitectura contemporânea tem como principio que apagar a individualidade do ser humano é positivo e mesmo desejável Contudo, o resultado é um ser humano que cada vez o é menos, e que com isso perde o interesse que frequentemente lhe é dado, como no caso de Hulot, pelo erro, que é quase sempre individual. O aspecto mais melancólico é a felicidade das senhoras inglesas face a electrodomésticos que visam apenas deixar mais tempo disponível para o trabalho.

Na segunda sequência, um restaurante high-tech abre as suas portas a uma multidão de burgueses, tão fascinados com a modernidade do espaço que esquecem a falta de conforto deste e ignoram a demolição progressiva do restaurante que vai ocorrendo à sua volta. E uma crítica a um estrato preocupado consigo mesmo, onde a vontade de aparecer se sobrepõe à convivialidade desejada e que convive, por sua vez, com um hedonismo quase vergonhoso, sendo também uma crítica a uma sociedade que depende demasiado de tecnologias que podem falhar a qualquer momento. é aqui que a música ocupa o lugar determinante que sempre ocupou na obra do realizador: é o barómetro da situação, movimentando-se com ela. Os momentos mais caóticos s acompanhados por uma música infernal, a um tempo jazzística e sinfónica, enquanto que o suspense é denunciado e aumenta através de crescendos musicais nos restantes momentos.

Na sequência final, a circulação de viaturas na cidade é transformada num gigante carrossel, através de movimentos circulares de uma extraordinária, portadores de uma dúvida sempiterna: para onde se dirige aquele fluxo interminável de pessoas, a todas as horas do dia? A inquietação é tripla: quiçá para suas casas, onde procuram recuperar a humanidade de que foram privadas?, quiçá para suas casas, onde o quotidiano é apenas uma mera e aterradora continuação do seu dia de trabalho?, quiçá em direcção a diversões acéfalas?...

Alguém disse sobre Chaplin que era o melhor bailarino da sua época. Talvez Tati devesse ser considerado o melhor coreógrafo da sua, e não um cineasta que actualmente é visto apenas por minorias e cuja reputação foi derreada pelos seus esforços hercúleos. Esta noção, paradoxal quando comparada com os sucessos e o prestigio dos seus filmes à época em que foram lançados, é demonstrativa das mudanças do mercado nas últimas décadas. Enquanto nos anos 60 cineastas como Bergman, Truffaut ou Feilini fascinavam as massas, hoje são tidos como produtos para nichos específicos. Infelizmente, o nicho de Tati é mesmo capaz de ser o mais específico de todos.

Não ver este filme é um crime cinematográfico.

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