quarta-feira, novembro 01, 2006

Horas na Cinemateca - V


i) Eu vi o Cinema e chama-se Bitter Victory.

ii) O cinema de Nicholas Ray é, constantemente, (citando Sérgio Leone), uma dança de morte. Não há qualquer escapatória para aquelas personagens, e o seu cinema não é mais que o gozo sádico mesclado de ternura de os ver cair. E isso já é bastante mais do que é habitual.

iii) Os dois majores encarregados de levar a cabo uma missão suicida têm contas a ajustar, contas de saias (aliás, a mulher que ambos amam é descrita em tons tão parcos e aparece tão pouco tempo que é mesmo isso, um pretexto). E a batalha que travam, em pleno deserto africano, para obter documentos indicativos dos movimentos de Erwin Rhommel no norte de Africa, acaba por ser não mais do que uma antecâmara para o seu combate pessoal.

iv) Esse combate pessoal é uma abstracção da luta entre acção e passividade. Mas essa luta também é uma luta que se desenrola também no interior das personagens. Quer o fabuloso Burton quer o assustador Jungers foram ambos, a seu tempo, exemplos de cobardia ou de coragem. São personagens que levam uma eternidade a serem descortinadas.


v) Bitter Victory é também, possivelmente, o melhor filme sobre a guerra não confundir com filme DE guerra) pré-Apocalypse Now. A diferença entre o assassinato e o acto de matar alguém em combate é discutida brilhantemente pelos dois protagonistas. A conclusão a que se pode chegar é a mais lógica, mas também a mais humana: todas as mortes são iguais. E, num contexto de barbárie, todos são, citando o título nacional de um filme de Ford, “homens para queimar”.

vi) Bitter Victory termina de uma forma absolutamente brilhante: um boneco de espuma, objecto de treino da chacina, a ser condecorado. É nisso que se transformam os homens na guerra entre poderes. E, muitas vezes, também nas guerras consigo próprios.

vii) Estas considerações desconexas só farão sentido para quem tiver visto o filme. Porque se há coisa que aprendi com esta obra-mestra de Ray é que há filmes que só com múltiplas visões podem ser pensados racionalmente. Nas primeiras visões, a emoção sobrepõe-se.

Etiquetas:

7 Comentários:

Blogger Hugo disse...

Pois. Devo dizer-te que mesmo para quem já viu mais vezes (eu pecador me confesso), é quase impossível falar racionalmente do filme. É uma obra de puro génio. Desde a frugalidade do deserto em pleno contraste com a exuberÂncia emocional dos dois majores, passando pelas magníficas cenas nocturnas (claras heranças do expressionismo) ou pela análise cortante que é feita à cobardia durante todo o filme. Este filme a cada visionamento sobe perigosamente do lugar n.º1 dos meus favoritos de sempre.

12:32 da tarde, novembro 01, 2006  
Blogger Daniel Pereira disse...

Interessa-me, acima de tudo o resto no cinema de Nicholas Ray (e que tudo o resto), daquilo que escreveste no ponto ii: "não há escapatória para aquelas personagens". É isso que me fascina.

Mas discordo da expressão "gozo sádico" que nunca sinto da parte do realizador. Parece-me mais o constatar de uma inevitabilidade, palavra que, acho, melhor define o negativo da natureza humana. Ou seja, filma-se essa "podridão" que há em todos nós como se não houvesse mais nada - e é aí que a ternura com que se o faz se torna exemplar. Exemplo? O célebre plano de Burton. Bénard da Costa diz que é o mais belo dos planos. Discordo (acho outros mais belos). Mas é o mais nobre dos planos.

1:05 da tarde, novembro 01, 2006  
Blogger Ricardo disse...

O filme dos falhados. Como diria o outro, o mais belo dos filmes.

2:09 da tarde, novembro 01, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

Caro Daniel:

no tom, claro que não é. Daí o "mesclado de ternura". Mas repara: pôr-se, à maneira de Deus ex-machina, personagens sempre a cair pressupõe esse gozo sádico. Que é, dado que estamos sempre todos em queda, o gozo sádico que a Vida tem para connosco. Mas, sobretudo, ese gozo sádico parte, a meu ver, do espectador: vamos sempre lá disfrutar da condenação dos outros. E, por conseguinte, da nossa.

Take Care,
Miguel Domingues

11:56 da tarde, novembro 01, 2006  
Blogger Daniel Pereira disse...

Hum, assim concordo plenamente.

7:09 da tarde, novembro 02, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

Oh Helena, sou leitor assíduo do teu blog, mersmo que não comente muito. Acho que fazes um excelente trabalho. É, por conseguinte, uma honra ter um link para mim no teu site. Não faço mais nada se não agradecer publica e profundamente.

Cumprimentos,
Miguel Domingues

11:48 da tarde, novembro 02, 2006  
Blogger C. disse...

Como eu perdi isto, outra vez, na cinemateca é que não me perdoo...

9:53 da tarde, novembro 07, 2006  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial


Free Hit Counter