O meu DocLisboa
O DocLisboa é, por assim dizer, diferente de outros festivais (nomeadamente o IndieLisboa) em termos de ambiente. Talvez por já se ter imposto e por já estar na quarta edição, não há, pelo menos nas sessões a que fui, a febrilidade e o entusiasmo que há no outro festival lisboeta.
O que, por sua vez, não significa que não tenha sido um sucesso tremendo esta edição de 2006, como o atestam as sucessivas sessões esgotadas, por exemplo, no período da tarde. Este é um festival consolidado, e cujos espectadores se dividem entre os convertidos, tranquilos no seu percurso pelos filmes, e os iniciados, que se adaptam imediatamente à calma e sofisticação deste festival, no que muito ajudam as extraordinárias instalações da Culturgest.
O meu percurso começou com Mysteryon (1991), primeira parte de uma trilogia dedicada a questões religiosas da autoria da finlandesa Pirjo Honkasalo. Mostrando o percurso iniciático de uma jovem candidata a freira juntamente com as celebrações religiosas que pautam o dia-a-dia das freiras de convento na Estónia, é um filme lento e arrastado, que tenta perscrutar por detrás da rotina do convento e penetrar as motivações de quem faz da fé a sua vida. Não o consegue, e sobram apenas um conjunto de vinhetas sem particular interesse,à excepção de mostrar que as feridas espirituais das candidatas são tantas que estas optam por ir para um sítio onde essas feridas doam menos e não se possam expandir. Nem a curiosidade de ter sido filmado em condições muito adversas, ainda durante a existência da URSS (numa época em que as associações religiosas de qualquer tipo eram proibidas), lhe conferem estatuto maior que a curiosidade.
O Japão merece uma atenção especial em 2006 com a retrospectiva “Histórias Mínimas – O Documentário Japonês Contemporâneo”. E história mínima, do ponto de vista estético, é o que se pode dizer de The Cheese and The Worms, documentário caseiro e doméstico de Kato Haruyo. Durante hora e meia, acompanham-se dois momentos muito especiais na vida da realizadora: a morte de sua mãe e o período subsequente. Tocante retrato da doença, é um filme simultaneamente carinhoso e lúcido, que filma a vida quotidiana (em câmara digital). É impressionante a tranquilidade zen com que, no velório, filma o corpo da mãe como se estivesse grata por tudo o que a progenitora fez por ela, do mesmo modo que, já antes, tinha filmado o calvário físico da mesma com uma enorme sensação de partilha. Ademais, as crianças, sobrinhos da cineasta, estão sempre por lá para nos lembrar da eterna continuidade da vida. No final, quando a avó de noventa anos vê o filme que mostra os últimos tempos da filha, percebe-se: aquele é somente um “home movie” que, não sendo nada de extraordinário cinematograficamente, deixa um conforto na alma a todos os que o vêem.
O mesmo conforto que Logo Existo, da portuguesa Graça Castanheira, deixa. Como homenagem à sua mãe, a quem um Acidente Vascular-Cerebral mudou completamente o feitio, a realizadora foi à procura de outras pessoas afectadas por esta doença. Duas pessoas (um actor teatral e, segundo creio, uma contabilista) que tentam ultrapassar a sua nova condição, tudo filmado de uma forma sentimental mas nunca melosa. É um filme reconciliador, porquanto nos mostra a luta contra as dificuldades que todos os humanos têm de travar.
Outra amostra há de uma enorme saúde no documentário português: Cartas a Uma Ditadura, de Inês de Medeiros faz das suas fraquezas forças. Por um lado, um dispositivo banal, centrado em depoimentos, em imagens de arquivo, em sons da época. Por outro, uma pungente radiografia, com a precisão do grande jornalismo, de um tempo em que o medo se travestia de esperança. Através do achamento de um baú de cartas a responder ao chamamento de uma associação de mulheres pró-salazaristas, o que se vê é um país assustado, passivo, conivente, ignorante e cioso da sua paz. Os problemas que se entrevêem neste filme são comuns aos dias de hoje – e o kitsch também: é brilhante o momento em que uma carta define a candidatura do General Humberto Delgado como “um vendaval satânico”.
Improvavelmente, o que esta pequeníssima selecção trouxe de melhor foi o sempre tão fustigado cinema português. Mas esta foi também uma edição marcada pelo estado do mundo, com documentários sobre a prisão da Baía de Guantanamo e o mundo empresarial. Esta pequena amostra, ainda que centrada numa importantíssima componente humana, não é nem por sombras significativa do programa do festival. Mas, no desbravar de vários aspectos da natureza humana, o DocLisboa é um evento fundamental. A passagem pela Culturgest foi, sem qualquer dúvida, muito recompensadora.
O que, por sua vez, não significa que não tenha sido um sucesso tremendo esta edição de 2006, como o atestam as sucessivas sessões esgotadas, por exemplo, no período da tarde. Este é um festival consolidado, e cujos espectadores se dividem entre os convertidos, tranquilos no seu percurso pelos filmes, e os iniciados, que se adaptam imediatamente à calma e sofisticação deste festival, no que muito ajudam as extraordinárias instalações da Culturgest.
O meu percurso começou com Mysteryon (1991), primeira parte de uma trilogia dedicada a questões religiosas da autoria da finlandesa Pirjo Honkasalo. Mostrando o percurso iniciático de uma jovem candidata a freira juntamente com as celebrações religiosas que pautam o dia-a-dia das freiras de convento na Estónia, é um filme lento e arrastado, que tenta perscrutar por detrás da rotina do convento e penetrar as motivações de quem faz da fé a sua vida. Não o consegue, e sobram apenas um conjunto de vinhetas sem particular interesse,à excepção de mostrar que as feridas espirituais das candidatas são tantas que estas optam por ir para um sítio onde essas feridas doam menos e não se possam expandir. Nem a curiosidade de ter sido filmado em condições muito adversas, ainda durante a existência da URSS (numa época em que as associações religiosas de qualquer tipo eram proibidas), lhe conferem estatuto maior que a curiosidade.
O Japão merece uma atenção especial em 2006 com a retrospectiva “Histórias Mínimas – O Documentário Japonês Contemporâneo”. E história mínima, do ponto de vista estético, é o que se pode dizer de The Cheese and The Worms, documentário caseiro e doméstico de Kato Haruyo. Durante hora e meia, acompanham-se dois momentos muito especiais na vida da realizadora: a morte de sua mãe e o período subsequente. Tocante retrato da doença, é um filme simultaneamente carinhoso e lúcido, que filma a vida quotidiana (em câmara digital). É impressionante a tranquilidade zen com que, no velório, filma o corpo da mãe como se estivesse grata por tudo o que a progenitora fez por ela, do mesmo modo que, já antes, tinha filmado o calvário físico da mesma com uma enorme sensação de partilha. Ademais, as crianças, sobrinhos da cineasta, estão sempre por lá para nos lembrar da eterna continuidade da vida. No final, quando a avó de noventa anos vê o filme que mostra os últimos tempos da filha, percebe-se: aquele é somente um “home movie” que, não sendo nada de extraordinário cinematograficamente, deixa um conforto na alma a todos os que o vêem.
O mesmo conforto que Logo Existo, da portuguesa Graça Castanheira, deixa. Como homenagem à sua mãe, a quem um Acidente Vascular-Cerebral mudou completamente o feitio, a realizadora foi à procura de outras pessoas afectadas por esta doença. Duas pessoas (um actor teatral e, segundo creio, uma contabilista) que tentam ultrapassar a sua nova condição, tudo filmado de uma forma sentimental mas nunca melosa. É um filme reconciliador, porquanto nos mostra a luta contra as dificuldades que todos os humanos têm de travar.
Outra amostra há de uma enorme saúde no documentário português: Cartas a Uma Ditadura, de Inês de Medeiros faz das suas fraquezas forças. Por um lado, um dispositivo banal, centrado em depoimentos, em imagens de arquivo, em sons da época. Por outro, uma pungente radiografia, com a precisão do grande jornalismo, de um tempo em que o medo se travestia de esperança. Através do achamento de um baú de cartas a responder ao chamamento de uma associação de mulheres pró-salazaristas, o que se vê é um país assustado, passivo, conivente, ignorante e cioso da sua paz. Os problemas que se entrevêem neste filme são comuns aos dias de hoje – e o kitsch também: é brilhante o momento em que uma carta define a candidatura do General Humberto Delgado como “um vendaval satânico”.
Improvavelmente, o que esta pequeníssima selecção trouxe de melhor foi o sempre tão fustigado cinema português. Mas esta foi também uma edição marcada pelo estado do mundo, com documentários sobre a prisão da Baía de Guantanamo e o mundo empresarial. Esta pequena amostra, ainda que centrada numa importantíssima componente humana, não é nem por sombras significativa do programa do festival. Mas, no desbravar de vários aspectos da natureza humana, o DocLisboa é um evento fundamental. A passagem pela Culturgest foi, sem qualquer dúvida, muito recompensadora.
Etiquetas: Especiais
2 Comentários:
Como não vi nenhum desses filmes e não me apetece escrever sobre os que vi, venho aqui, apenas, para dizer que a Inês de Medeiros é linda e tem uma voz igualmente linda.
Desculpem lá...
O meu DocLisboa...
Aqui:
http://chroniqueslisbonne.blogspot.com/2006/10/fora-da-lei.html
E aqui:
http://chroniqueslisbonne.blogspot.com/2006/10/logo-existo.html
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial