sexta-feira, outubro 06, 2006

Horas na Cinemateca - IV


Nunca houve relação artística como a de Josef von Sternberg com Marlene Dietrich. Cada um dos sete filmes feitos entre ambos é um monumento à beleza da actriz, ao modo quase pós-moderno como usa a sua condição feminina enquanto meio de defesa e de ataque. E sobretudo, à forma como, por baixo dessa força, está sempre um ser humano complexo, pronto a que as suas sucessivas camadas sejam reveladas e homenageadas.

Dishonored (1931) não é excepção, mas também não está ao nível de outros clássicos do par, como The Blue Angel (1930), The Shanghai Express (1932) ou The Scarlett Empress (1934). Neste, Dietrich interpreta uma prostituta cujas qualidades de sedução são apreciadas pelo chefe dos serviços secretos do então decrépito Império Austro-Hungaro. Enquanto espia, denominada X-27, é incumbida de prender o Tenente Kranau (interpretado por Victor McGlaglen, conhecido da trilogia da cavalaria de John Ford), espião russo em terras austríacas. Valsa de morte, Dietrich está condenada desde o início, e o amor entre ambos serve apenas de música de fundo para essa dança.

É um filme difícil de gostar, e muito fácil de gostar. Difícil de gostar, porque está muito longe de ser escorreito, e até tem muitos momentos mortos. Inclusivamente, estas dificuldades de ritmo desbaratam uma das mais estimulantes ideias estéticas desta obra, os raccords em sobre-impressão que, mantendo a sensação de rio sem retorno do destino de Dietrich, não conseguem dar ao filme a fluência que lhe falta. Muito fácil de gostar, porque nele estão algumas das melhores sequências da parceria entre cineasta e actriz, desde o baile de máscaras que antecipa o barroquismo de The Scarlett Empress, à sequência em que a actriz alemã seduz um oficial russo enquanto "Heidi em tons de Lolita". Mas, sobretudo, é o filme da sequência final do fusilamento, em que Dietrich, rodeada de estilizados muros desenhados, a tentar esmagar qualquer noção de individualidade, vestida à prostituta – porque prefere lembrar-se dos homens que serviu a lembrar-se do país que serviu –, é um espírito livre a mandar à merda todos os que a tentaram limitar. É a sequência que melhor ilustra o título francês de um filme de Fassbinder : Prenez Garde à la Sainte Pute. É a melhor razão para ver e apreciar este filme.


Em 1954, entre La Carozza D’Oro e Elena et les Hommes, Jean Renoir realizou French Can-Can, filme que, glosando Truffaut, parece dizer A Vida é o Palco. Inspirado na história do fundador do Moulin Rouge, conta a história de Danglard (Jean Gaabin, com a facilidade e a competência típicas), charmoso pelintra, megalómano que necessita sempre do dinheiro dos outros para os seus projectos. Depois do falhanço de vários dos seus projectos para clubes nocturnos, com os mais variados números para entreter os clientes, a descoberta de uma bailarina do povo chamada Nini, com quem se envolve sentimentalmente, tem a ideia de construir um espaço que revitalize o can-can, e onde se possa pagar perigo, excitação e sedução a preços competitivos.

Não sendo um Renoir de topo, não deixa de ter presente o humanismo que faz parte das suas obras, e a galeria de personagens populares que povoam este filme é, em tom e em variedade, riquíssima. O cerne da obra está, contudo, na Eterno Retorno de paixão, de trabalho, de nervos e e zangas que estão por detrás dos espectáculos montados. Esse Eterno Retorno é a vida dos seus participantes, e compreender esse estado de coisas faz parte do auto-conhecimento das personagens. Para que, de quando em vez, uns possam receber os aplausos do público, e outros possam sentar-se nos bastidores e desfrutar do sucesso. Em breve, tudo começará de novo…

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1 Comentários:

Blogger Ricardo disse...

Dos dois, só tive oportunidade de ver Dishonored (nos bons tempos da rtp 2), que achei um filme algo desinteressante e uma variante atrapalhada da Mata-Hari.

Mas essa cena que falaste em que ela se disfarça de Tirolesa Lolita é abençoada! Com mil trovões, tenho que rever essa cena!

6:53 da tarde, outubro 06, 2006  

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