O Scorsese Secularizado
A estreia de The Departed, o último filme de Martin Scorsese, aproxima-se a passos largos. Nos Estados Unidos, multiplicam-se as análises ao novo filme (Village Voice e The New York Times, para citar apenas dois exemplos). Análises essas que, a bem dizer, não li, pois sou contra ler-se críticas “a priori”. Podem ser, mesmo que sub-repticiamente, influentes em análises futuras. De qualquer modo, chegados a este ponto, creio que importa fazer um ponto de situação da carreira do mestre nova-iorquino.
A carreira de Scorsese entrou na sua fase auto-referencial aquando de Bringing Out The Dead, até ver, o último grande Scorcese. Que é também o mais pequeno dos grandes scorseses. Porque se Casino (1995) representava um regresso ao passado, quer na escolha do duo Robert De Niro/Joe Pesci e na adaptação de uma obra de Nicholas Spilleggi, o mesmo de Goodfellas (1990), fazia-o acrescentando elementos à sua obra. Nunca o italo-americano foi tão longe no explanar gráfico da violência, nem na voracidade típica do seu cinema, que se aproximava de um comboio prestes a descarrilar. E descarrila mesmo, na segunda metade do filme.
Em Bringing Out The Dead (1999), o elemento cumulativo face à obra feita não existe. É um filme perfeito, feito por quem sabe, sobre aquilo que sabe. Mas é sintomático que muitos críticos, á época, tenham apelidado o filme de Ambulance Driver. Restam alguns dos momentos mais belos da carreira do cineasta, como aquele em que Nicholas Cage segura um nado-morto nas mãos, ou aquele em que Tom Sizemore, possuído, destrói uma ambulância com um taco de basebol. Felizmente, esses grandes momentos, pura beleza demencial (será isto que Kant queria dizer com Sublime?) chegam para fazer deste filme uma obra de topo. Mesmo sendo o mais pequeno dos grandes scorseses.
Os três anos que separaram o filme acima referido de Gangs of New York (2002) foram convulsos. Problemas com os produtores, atrasos na rodagem, derrapagens orçamentais e rumores nunca confirmados de falta de entendimento entre os dois actores principais (Leonardo DiCaprio e o fulgurante Daniel Day-Lewis) tornaram as filmagens um pesadelo que deve apenas ser comparável à produção de New York New York (1977). Pior, o filme foi amputado de parte considerável da sua duração, o que lhe conferiu um aspecto algo fragmentado.
Scorsese será sempre, contudo, sinónimo de raiva. E a raiva com que filma e, sobretudo, monta Gangs of New York compõe as entranhas do seu filme de 2002. Mas trai, ao fazê-lo, um ar de “Martin Scorseses Greatest Hits” que enferma a obra não numa corrente autoral, mas num tom algo requentado. É um filme de um esteta, sem dúvida – são todos, no caso deste mestre –, mas de um esteta a quem foram cortadas as vazas. E o resultado final ressente-se disso.
The Aviator (2004) é um filme de que custa a muitos fãs do realizador falar. É o seu pior filme, o único que faz passar pela cabeça de um admirador a hipótese de o seu ídolo não ser divino. O facto de ser uma encomenda ajuda a este estado de coisas, mas de encomendas está o panteão scorsesiano cheio (The Last Waltz, 1978, Alice Doesn´t Live Here Anymore, 1974, etc.). É um filme de quem procura desesperadamente reconhecimento claro, e, pior do que isso, não o consegue – Óscares á cabeça. É um “biopic” com todos os traços tradicionais do “biopic”, superiormente filmado, mas ainda assim uma espécie de A Beautiful Mind de autor.
O Scorsese que encontramos antes de The Departed é um Scorsese secularizado: perdeu a sua dimensão divina, recriou-se á sua imagem, substituiu o espírito pela liturgia e abdicou da sua perfeição. O mais interessante que tem feito são os documentários (salvo o filme sobre Dylan, que é mais do bardo que do cineasta), e mesmo esses não escapam à noção de que o Touro amansou. Veremos o que traz o novo filme.
Etiquetas: Ensaio
4 Comentários:
O que me faz alguma "comichão" é a escolha de Leonardo Di Caprio. O aviador não me motivou, mas deixou-me uma questão a pairar: Será que Howard Hughes merecia ser representado por este imberbe actor? Uma outra escolha não teria melhorado ligeiramente o filme?
Porque não o próprio Daniel Day-Lewis, tão forte em "Idade da inocência"? (isto sem falar na excelência de interpretação em Gangs of New York)
E, para mim, Scorsese estará sempre ligado ao mestre Robert de Niro, seja em Taxi Driver, Raging Bull, Cape Fear, Goodfellas ou Casino.
Não sendo louco por DiCaprio, também não o acho assim tão mau. Mas claro que que depois de ver DeNiro e Day-Lewis em filmes do mestre, claro que o DiCaprio parece escolha de segunda.
Matt Damon e Mark Whalberg, para dar dois exemplos, são bem melhores.
Mas será que os realizadores da "Nova Hollywood" estão todos condenados a "fritar"?
O Scorsese é o que se vê; o Coppola cada vez que dá uma entrevista parece estar perdido num mundo longínquo, que só ele porventura entenderá; o Bogdanovich já não faz um filme de jeito à séculos e anda perdido em séries de TV; o Robert Altman sofre, concerteza, de distúrbios psicológicos graves; já para não falar do Dennis Hopper, esse fez o Easy Rider e parou por ali...
Cambada de "drugados" é o que eles são todos! Talvez se não se tivessem desintoxicado a coisa corresse melhor...
Um último comentário quanto ao Scorsese. Acho que o que faz mal a esse homem é a tal necessidade do raio do Óscar... Para que é que ele quer aquilo?!?!? Para que é que precisa daquilo?!?!? Um realizador que ganha a palma de ouro não precisa de mais nada no curriculum... Lembro, a este propósito, uma entrevista da Jane Campion em que, quando soube que "O Piano" tinha sido nomeado para o óscar de melhor argumento, pensou para ela mesma - "Será que o filme é assim tão mau?".
Saudações bloguísticas
Concordo contigo, e entre os dois nomes que sugeriste escolheria Mark Whalberg. E, quem sabe, Edward Norton?
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