quarta-feira, outubro 11, 2006

Museu De Cera Em Carne Viva



i) Sobre Brian De Palma, há algo que nunca é suficientemente referido: primando sempre pela experimentação formal, a sua obra nunca primou pela regularidade criativa. Obras brilhantes como Carrie (1976) e Os Intocáveis (1990) coabitam com filmes menores como Mission to Mars (2000) e Femme Fatale (2002), gigantescas estátuas de gelo, belíssimas por fora e gélidas por dentro.



ii) The Black Dahlia é o melhor filme de Brian De Palma. Não houve outro assim e dificilmente haverá na sua carreira. Partilha, é certo, o meandro cinematográfico com Body Double (1984 - embora nesse caso se tratasse do cinema de baixo orçamento e do cinema pornográfico), mas dota-o de uma pulsão existencial ausente daquele, que inclusivamente aumenta à potência dez a “malaise” do “film noir” tradicional. Aquilo que em Double Indemnity (Billy Wilder, 1944) ou The Big Sleep (Howard Hawks, 1946), para citar apenas dois títulos, aflorava constantemente, é aqui uma luz estroboscópica a cegar todas as personagens. O "film noir" é o filme de fantasmas por excelência, e De Palma explica-o como ninguém.

iii) A relação de The Black Dahlia com o venerando género cinematográfico é sempre, dupla: por um lado, a enumeração dos elementos constituintes do género (a loura platinada, a morena demoníaca, a narração em voz-off, etc.) é rigorosa, tornando o filme numa espécie de museu de cera em carne viva. Porque nunca deixa de preencher essas estátuas com veículos humanos, cujo principal defeito é serem (para citar o titulo de um dos seus filmes) perseguidos pelo passado. Por outro lado, há sempre o comprazimento por parte de De Palma em ampliar todos os traços marcantes do "film noir", quer como modo de suplantar as limitações impostas pelo código Hays (a maior liberdade na linguagem e na representação sexual), quer com a intenção de relevar pontos essenciais do género à maneira ensaísta. Como em todos os “movie brats”, o espectador mistura-se assaz sagazmente, com o crítico.



iv) Ainda assim, o que vence realmente o filme é o domínio da estética por parte do cineasta. A câmara para De Palma é uma verdadeira caneta, capaz de desenhar movimentos perfeitos e fáceis, que dão ao filme o flutuar de um pesadelo. Essa sensação de pesadelo é ampliada pela progressão narrativa, descida aos Invernos cujo final relativamente feliz mais não é do que, como nalgum cinema clássico americano, um paliativo para a violência do que se acabou de mostrar. No final existem apenas os fantasmas de Hollywood, uma história de glamour escrita a sangue e loucura. É, no limite, uma espécie de Mulholland Drive em tons de policial negro. Brilhante.


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8 Comentários:

Blogger Ricardo disse...

Miguel, sou teu fã! És dos poucos que compreenderam esta obra-prima secreta menosprezada por público e crítica. O único ponto da Internet onde vi falarem do filme com lucidez foi neste estaminé de título obsceno: http://www.cinemademerde.com/Black_Dahlia.shtml

Se Brian De Palma pode variar entre filmes interessantes que criam um universo vincado (Carrie, Carlito’s Way), tentativas atrapalhadas de plagiador louco (Obsession, Dressed to Kill) e o puro vazio de ideias (Snake Eyes, Mission Impossible); por vezes consegue atingir o podium com alguma obra-prima (Scarface, The Untouchables). E este Black Dahlia é com certeza o filme máximo dele. Restringe-se ao essencial, não mostra demasiado, mesmo os movimentos de câmara não são excessivos, como é habitual nele; veja-se aquela pasmosa planificação da cena do tiroteio que precede a revelação do cadáver nas traseiras – magnífica conjugação espaço/tempo.

Um filme denso a todos os níveis que possamos imaginar (fotografia, luz, som), complicado, mas nunca em excesso, é um exercício de cinema puro como só aparece de vez em quando.

2:22 da tarde, outubro 11, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

OH rapaz! Por quem sois! Muito e muito obrigado.

De resto, nem me chateia que haja quem não goste do filme. Isso até demonstra personalidade. O que me chateia é que haja gente, como os críticos do Público, que ache o filme "assim-assim".

E que dizer, juntando ao teu exemplo de grande cinema, do momento, todo em plano subjectivo em que a personagem de Hartnett conhece a familia da personagem de Swank? Brilhante.

Cumprimentos, Rapaz!

11:22 da tarde, outubro 11, 2006  
Blogger Hugo disse...

Miguel, até que enfim que se junta a mim e ao Ricardo a bater palmas ao De Palma! :-)

O que é mesmo triste é veres os críticos de cá a copiarem o discurso americano e os "críticos" - manifestando desconhecimento de causa, o mais das vezes - a queixarem-se de ritmo lento...

Ora bolas! Há panorâmicas e travellings mais envolventes do que aqueles que De Palma oferece? Claro que não! E a câmara subkectiva que falas? Absolutamente soberba!

Abraço

PS - pior mesmo é quando apreciam o filme com base no livro. Disparate! Dois objectos distintos. Mas ambos soberbos.

12:21 da manhã, outubro 12, 2006  
Blogger Daniel Pereira disse...

Até ia com vontade de amar o filme só para, com vocês os três (haverá mais admiradores, mas a vocês já conheço), formar uma espécie de "Quatro Turcos da Crítica Blogosferense". Pois bem, pela frase anterior já se aperceberam que não me junto a vocês.

Este parágrafo é para pôr uns escudos à minha volta. Não vi todos os "noirs" do cinema clássico, mas vi alguns. Não vi todos os filmes do De Palma, mas vi alguns. É certo que não vejo The Untouchables há algum tempo (embora as recordações que tenha dele são muito positivas) e também não acho o Carlito's Way, ao contrário do Hugo, nada de especial. Ao contrário do Ricardo, fico fascinado com filmes como Mission: Impossible ou Snake Eyes, filmes que no seu aparente vazio questionam o dispositivo que é o cinema. E o que gosto desses "pastiches" que são Dressed to Kill ou Blow Out.

The Black Dahlia, então. Esteticamente brilhante - também fico doido pela forma como o homem maneja a câmera, excito-me a ver os seus "travellings" -, o filme peca pela sua vontade de grandiosidade misteriosa, percebmos no final. Não me senti minimamente preparado (mesmo que o problema seja meu) na maior parte do filme para depois levar com esses fantasmas de que falam. As subjectivas não estavam lá por acaso, claro, mas não me parece que eram fortes em pistas. Rever o filme, agora sabendo tudo, para ver como bate certo (não sei se é conselho de alguém, estou a mandar para o ar)? Recuso tal ideia. Só revelaria um programa que me faria, aí sim, recusar totalmente o filme. Coisa que, de longe, não faço. Porque, desculpa Miguel, gostei do filme "assim-assim" - interessante, sóbrio, mas com defeitos suficientes, ou se calhar sem virtudes suficientes, para obra-prima. E, sim, não me venham com estórias, seria preciso actores com mais calibre que Josh Hartnett ou Aaron Eckhart para transmitir o peso pretendido. Hartnett não vai mal quando não se lhe pede muito, mas à necessidade de emoção é confrangedor.

(Não falo da Scarlett.)

Provavelmente, não disse tudo. Mas como já estou à espera da cacetada...

Três abraços.

8:04 da tarde, outubro 14, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

Olha, Daniel, só te digo uma coisa: conhecer as pessoas é coisa lixada. Porque aquilo que, vindo de outras pessoas, me parece parvoíce, vindo de ti parece-me razoável e legítimo. Deve ser por sermos amigos, não sei.

Ah, e essa história do "Quatro Turcos da Crítica Blogosferense" apela muito ao narciso que há em mim. LOL

Take Care,
rapaz.
- - - -

Olha, Hugo, não li o livro, logo não posso falar. E acho que o objectivo da adaptação literária deve ser precisamente fazer um objecto distinto. Mas fiquei com ouma curiosidade em ler o Ellroy que nem imaginas...

Fica bem,
rapaz.

11:22 da tarde, outubro 15, 2006  
Blogger Mafalda Azevedo disse...

Caríssimos Quatro Turcos da Crítica Blogosferense,

Sempre gostei do nosso amigo Brian De Palma. Não de tudo mas de muitas coisas: das câmaras lentas (que conseguem ser insuportáveis em trabalhos de outros realizadores), da violência explícita, das panorâmicas, dos travellings, das mulheres (… Angie Dickinson, Sissy Spacek …). Em suma, aquilo que sempre admirei no Brian De Palma é a sua capacidade de exercitar o visual e de, como o Daniel refere, questionar o cinema. Pois bem. The Black Dahlia também revela isto mesmo mas peca noutros aspectos.
Brian De Palma quis ter a musa de todos nós – Scarlett Johansson – e falhou redondamente. (Custa-me admiti-lo mas a Scarlett está irreconhecível.) Brian De Palma quis ter a Hilary Swank a fazer de femme fatale e esticou-se ao comprido. (Por muito que respeite Hilary Swank, a verdade é que ela está condenada a ser uma mulher-macho. Até já ganhou dois Óscares por ser tão boa a desempenhar esse papel… Ainda por cima, sejamos sinceros, a sua pouca beleza e a sua nenhuma graciosidade não poderiam conquistar homens e mulheres como Brian De Palma nos quer fazer crer…)
Mas enfim! Até podíamos esquecer os actores e rendermo-nos a tudo o resto. Porém, essa “densidade – complexidade”, referida nos vossos comentários, teima em existir porque The Black Dahlia peca por erros narrativos, conclusões ininteligíveis e uma certa atabalhoação quando se começa a aproximar o the end. Nas primeiras sequências, De Palma começa bem, cheio de ambiguidades e de pressupostos inteligentes. No entanto, acaba por perder o fio à meada. (Coisa que jamais aconteceu no Double Indemnity, no Notorious ou no Out of the Past) Aliás, comparar-se Mulholland Drive, (filme que não procura atingir o público através da inteligibilidade do enredo mas sim através da forma como se questiona a necessidade de sentido durante a acção de ver um filme) a The Black Dahlia parece-me uma justificação para o facto de De Palma não ser um bom contador de histórias.

Cumprimentos cinéfilos a todos!

12:48 da tarde, outubro 16, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

Olá Mafalda,

nada no teu comenta me merece outro comentário a não ser a afirmação da legitimidade da tua opinião pessoal. Contudo, um pormenor impele-me a escrever: quando citei Mulholland Drive fi-lo apenas enquanto exemplificação de um olhar iconoclasta sobre o glamour de hollywood. Não me referia a qualquer proximidade estética entre os dois filmes.

De resto, num filme que é não movido pelos actores, o ligeiro (penso eu) erro de casting de Swann e o flagrante erro de casting de Johansson não prejudicam o filme. Até porque, a contrabalançar, Hartnett está brilhante.

Cumprimentos,
Miguel Domingues

8:31 da tarde, outubro 16, 2006  
Blogger Hugo disse...

Quatro turcos da crítica blogosferense?? ò Diabo, confesso que gostei do epíteto (pronto, ó Ego, modera-te!).

Miguel: olha que o Livro tem um enredo bem mais denso (se aqui se tivessem feito metade dos interrogatórios ou se se tivesse ido até ao México...). E o Ellroy é, também ele, um "revisitador" do noir, sobretudo Hammett e Chandler, os meus favoritos. Se gostares da Dália Negra, de certeza que correrás para os outros três elementos do Quarteto de L.A.: o grande desconhecido, L.A. Confidencial e White Jazz (este ainda não traduzido para português). Estou agora a ler o novo tríptico dele (american tabloid, the cold six thousand ao qual segue um livro prestes a sair). Só digo isto sobre o novo trio: tem o JFK, o Hoover, o Howard Hughes e mais uns quantos figurantes lendários.

Mafalda: essas falhas no enredo são as "violações" (salvo seja, claro) da história original. Mas confesso que acabei por não desgostar. Com mais 10-15 minutos de filme e encaixavam na perfeição. Acho eu.

Dúvida: porque é o De Palma é tão sovado, caramba? :(

10:02 da tarde, outubro 16, 2006  

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