terça-feira, julho 19, 2005

"A Guerra dos Mundos"

Com A Guerra dos Mundos, Steven Spielber prossegue o seu inexorável trajecto em direcção a terrenos de uma negritude quase palpável. O percurso foi talvez iniciado com A Lista de Schindler, que já leva mais de dez anos, mas foi aprofundado desde A.I. (2001), com apenas uma paragem em Terminal de Aeroporto (2004). Ressalve-se que não se entende por trajecto em direcção à negritude um simples enumerar do tema, que nunca foi escondido de filmes como E.T. (1982) ou, logicamente, Parque Jurássico (1994), mas antes um maior estudo das suas matizes, um interesse mais premente em apreender o seu funcionamento. A Guerra dos Mundos prossegue e aumenta a intensidade desse trajecto. Porquê? O cineasta já afirmou por diversas vezes: os tempos prestam-se a isso.

O 11 de Stembro marcará indelevelmente o imaginário de várias gerações de americanos, mas poucos foram os cineastas que pegaram no tema pelos chifres. Antes de Spielberg, só Spike Lee, no seu A Última Hora (2003). Mas enquanto Lee transformou a data num cálvario pessoal, misto de violência física e jeu de massacre com fim na expiação, Spielberg, politicamente mais ortodoxo, transformou-a numa celebração da sobrevivência, do direito a uma diferença dos povos. Não deixou, no entanto, de se reservar o direito de assustar o espectador, sobretudo através do sentimento, objectivo, universal e claustrofóbico, de fuga desenfreada sem quaisquer garantias de sucesso face a um perigo invisível, inaudível e ubíquo. O trajecto das personagens é linear, mas dentro desa linearidade esconde-se a impotência e os primários reflexos humanos, duas componentes importantíssimas do pânico. O desabar dos edificios e o pó levantado revelam a pureza do ser.

Clássico, Spielberg empresta ao seu filme a mais importante característica da ficção científica, a recorrência que a torna um género já clássico: uma constante preocupação com o presente, onde o futuro ou a espectacularidade mais não são do que meros mcguffins. Mais importante ainda, polvilha pelo fime pedaços de lirismo, como a sublime sequência em que Cruise sai da casa de Tim Robbins para encontar a planicie da Land of Hopes and Dreams coberta de vermelho-sangue. Se há cena que assine um filme, essa é definitivamente uma.

O que é que, então, faz com que o filme não dê o salto e não seja uma das obras maiores do cineasta americano? Essencialmente, dois factores: por uma lado, a constante preocupação com a família , presente em todas as obras do cineasta, começa a assemelhar-se a uma chapa-quatro, utilizável em todas as situações e mais algumas para conferir a necessária marca autoral. Por outro, Tom Cruise dificilmente encarna na perfeição o herói springsteeniano desejado, demasiado preso ao seu sorriso afável e à sua personalidade de maridinho da América. Aliás, na promoção ao filme, o actor prefere focar a sua admiração por Spielberg, do que o substrato politico ou temporal presente na obra. E se a obra a isso sobrevive, é porque esse substrato é verdadeiramente assinalável.

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3 Comentários:

Blogger Daniel Pereira disse...

Desculpa colocar aqui um comentário sobre o post sobre o declíneo do King, mas estou com medo que não vás ler um post com 2 meses...

De qualquer forma queria dar-te os parabéns por tão pertinente texto (que já tinha lido no Cinema2000). Mesmo que não tenha termo de comparação, já que apenas comecei a ir ao King em 2001, sinto no espaço um vazio que podia ser preenchido de outra forma.

Lia com gosto os teus textos no Cinema2000 (por mostrares um saber de cinema anterior a 1990...). Se não volatres a andar por lá, vou tentar ler-te aqui.

Um abraço

7:54 da tarde, julho 19, 2005  
Anonymous Anónimo disse...

Olá, Daniel.

Obrigado por apareceres. Também gostei muito da tua participação no cinema2000 como correspondente do IndieLisboa. Aliás, hei-de pôr um texto cá sobre a edição deste ano, e talvez aches curiosas as nossas diferenças de opinião.

De resto, continua a aparecer, participa sempre que te aprouver, e continua com o escrever cinema, que também frequento. E, quanto ao King, como nós, decerto haverá muita gente...

Take care,
Miguel Domingues

4:29 da tarde, julho 29, 2005  
Blogger Daniel Pereira disse...

Esse texto do Indie será interessante, ainda mais se a opinião é diferente. Pus um link do teu blog no meu e vou continuar a estar atento. Também tenho as portas abertas.

Um abraço.

7:08 da tarde, julho 29, 2005  

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