quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Horas na Cinemateca VII


Tenho e sempre tive alguns problemas com o realismo e seus prefixos e sufixos – mesmo adorando o realismo poético de Anton Tchekov, sempre pensei que grande parte dos autores realistas tendiam a preferir um processo cumulativo a um processo evolutivo. Foi o que vi em L’Enfant dos Dardenne. Mas quanto mais penso no filme, mais sinto vontade de o rever, de lhe dar uma segunda oportunidade. Afinal, se gostei tanto de Rosetta (1999), alguma coisa deve ter havido neles que me cativou.

Serve o exemplo dos Dardenne e de uma crítica que, se calhar, virei a renegar, para contextualizar a minha aversão inicial à obra de Roberto Rosselini. Nunca negando a importância da sua obra para a formação do cânone moderno do Cinema, em que a pulsão de vida substituía o artificialismo do estúdio (sem conotações morais, ambas as estéticas têm a sua validade), achava os seus filmes feios e enfadonhos. Comecei algo mal, diga-se: La Paura (1954), filme final do quinteto Bergmaniano, é um filme que só ganha conhecendo-se de antemão o contexto da sua feitura e a desintegração total da relação conjugal que ele preconiza. Avancei por Roma Cidade Aberta (1945), que me parece, na sua busca incessante pela verdade, um acto de apagamento pessoal, uma submissão ao ser das coisas que, normalmente, não procuro no Cinema. Prossegui com Alemanha Ano Zero (1948), que acho interessantíssimo no retrato de um tempo que, espera-se, nenhum de nós verá repetido, misto dos mais puros e animais sentimentos humanos com as ruínas que os fazem sobressair. Fiquei mais impressionado que conquistado. Até que cheguei a Stromboli (1950), e aí caí de joelhos. É um dos mais fortes monumentos à mulher amada que conheço. Quando o filme começa, Ingrid Bergman é uma presença que fascina o cineasta; quando o filme acaba, com a prodigiosa sequência do vulcão, já não há mais razão de ser do filme, tudo se verga perante o esmagamento daquela paixão. Daí que a Bergman irradie luz como nunca antes tinha feito. E agora, a minha reconciliação com Rosselini prossegue, por intermédio deste belíssimo Francesco Giullare di Dio (1950).

Reconstrução episódica e fragmentária da fundação da ordem franciscana, é um excelente exemplo de uma visão católica que privilegia a ética em detrimento da moral. É um filme sobre o prazer de fazer o Bem, a quase onanista relação que alguém pode ter com Deus. A constituição da ordem aparece como um momento de treino para a caridade em que desaparece a noção de milagre: nada há de sobrenatural nestas pessoas a não ser a sua vontade de fazer o que está certo. Desaparece o fogo do Inferno, ficam os sentimentos beatíficos. Tudo é um constante exercício zen de comoção, de auto-confiança, de ascese procurada. A inocência serve de arma contra os hipotéticos cinismo e demotivação gerados por um labor com poucos resultados imediatos. E a religião torna-se, como há muito para mim não era, um monumento à beleza, como nos quadros renascentistas tão citados a propósito deste filme. Perante tal avalanche de sentimentos, que me interessa se o som é directo, se os diálogos são improvisados ou se a luz é natural? O que interessa tem um nome claro: beleza.


Uma coisa apenas falhou nesta sessão: a já tradicional escassez das legendas, onde o tradutor tenta resumir numa só frase um discurso mais extenso ou, ao invés, escolhe, de um discurso inteiro, as frases que crê essenciais. Num filme italiano, dadas as semelhanças linguísticas, até nem é grave. Mas e se fosse um Ozu ou um Tarkovsky?

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4 Comentários:

Blogger Hugo disse...

É luminoso, de facto, o filme. Inbfelizmente não tive possibilidades de o ir rever :-(

3:43 da tarde, fevereiro 16, 2007  
Blogger Pedro Ludgero disse...

Para mim, já me bastava o Rossellini para eu gostar de cinema. Mas confesso que a princípio também não o entendi bem. É cinema que não se IMPÕE. Já viste "Europa 51"?

1:55 da manhã, fevereiro 20, 2007  
Blogger Miguel Domingues disse...

Pedro: não. Se tudo correr bem, irei vê-lo à Cinemateca na próxima quinta-feira. Cá estarei para contar a minha reacção.

Hugo: Pois, mas aposto que já deves ter lançado as gânfias ao catálogo, não?

2:57 da manhã, fevereiro 20, 2007  
Blogger Hugo disse...

Por acaso ainda não. Mas deixa vir o fim do mês e o S. Receber que eu resolvo(provavelmente) o problema derivado da questão. :-)

10:46 da tarde, fevereiro 21, 2007  

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