sexta-feira, novembro 17, 2006

Prosas esparsas sobre The Departed


Em Parceria com o blog Um Milhão de Estrelas
i) Comece-se por afirmar: em momento algum põe The Departed em causa o PSSEC (Processo de Secularização de Scorsese Em Curso). Mas, dentro dos filmes já secularizados, é sem dúvida um dos melhores, projéctil voraz coberto de estilhaços laminados.

ii) Falar de Scorsese, do ponto de vista formal, é falar sobretudo de dois componentes estilísticos: a montagem avassaladora e a flexibilidade dos movimentos de câmara. Com a primeira, Scorsese corta e dilacera; com a segunda, edifica. O cinema de Scorsese é, então, um curioso oximoro.

iii) Lembro-me de ter lido, aqui há uns tempos, que a repetição dos autores, algo caluniada por parte da crítica, era no fundo normal, porque resultante do mergulho do cineasta em si mesmo. Se The Departed é muito, muito melhor do que, por exemplo, Gangs of New York (2002), é porque o mergulho é de muito maior fôlego. Arriscando uma análise semiótica imperfeita, é o regresso à boa forma na estrutura narrativa em triângulo que caracteriza Raging Bull (1980), Goodfellas (1990) e Casino (1995). Nesta estrutura, há uma linha ascendente de vértice inferior esquerdo ao vértice superior, e uma linha descendente do vértice superior ao vértice inferior direito. A base, ligação entre os dois pontos baixos (ligação entre entre os dois pontos mnais baixos, início e fim, do percurso das personagens), é onde se encontra o significado. The Departed é exímio na aplicação desta estrutura.



iv) O ítalo-americano, católico exacerbado, é, ao mesmo tempo, cada vez mais desesperado. A religiosidade de Scorsese está cada vez mais próxima de um fatalismo onde o mergulho nas trevas, mais do que uma inevitabilidade, é desejável como escapatória. Procuram-se as trevas porque a espera é o pior. É, por assim dizer, uma visão anti-pascaliana: a austeridade de nada serve, mais vale aceitar a punição. E quando ela chega, é sangrenta, rápida e dolorosa.

v) Este será um filme de que nos lembraremos quando pensarmos nos tristes dias da Administração Bush. Exemplo: Alec Baldwin (nunca pensei que fosse tão bom actor), rindo como uma doninha, a dizer que adora a forma como o Patriot Act lhe facilitou a vida. Nesse aspecto, nota-se que o cineasta respeita muito mais aquele (Frank Costello, criação genial e demente de Jack Nicholson, figura nietschziana sem rei nem Deus) que cumpre a americanidade sem precisar de fatos Armani: tira o que quer, quando quer e como quer. Porque sabe que, na selvajaria da Pátria da Liberdade, nunca ninguém lhe dará nada. Desagregação moral? Nos dias que correm chama-se-lhe competitividade...

vi) Ao ver The Departed – e peço desculpa antecipada pela falta de classe da imagem – lembrei-me das alheiras de Mirandela. Como as boas alheiras de Mirandela, este é filme muito bom, na medida em que foi feito com restos muito bons.







Há uns anos, levei uma prima a ver Bringing Out The Dead. Gostou tão pouco que cheguei a temer pela minha vida. Agora, foi a minha namorada que confessou, depois da sessão, ter desejado sair a meio. Será o universo de Scorsese irremediavelmente masculino?

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11 Comentários:

Blogger Hugo disse...

Podes estar descansado. Uma quantas amigas minhas gostaram deste Scorsese. Logo não pode ser um Universo exclusivamente feminino, não é?

Quanto ao filme: Caramb! Gostei mesmo. É cinema como deve ser. Bem feito e por quem sabe.

6:42 da tarde, novembro 17, 2006  
Anonymous Anónimo disse...

Exceptuando a Hershey e a Burnstyn dos primeiros filmes, as mulheres foram sempre "saco de pancada" na filmografia scorsesiana( há a Cate Blanchett, mas como considero The Aviator quase um anti-Scorsese...),por isso, sim, "irremediavelmente masculino".

2:00 da manhã, novembro 18, 2006  
Blogger Francisco Mendes disse...

Magnífico apreender novamente aquela magnífica tensão patente no longínquo "Mean Streets" (talvez o meu Scorsese preferido, mesmo acima de um "Taxi Driver", p.e.), verificando ainda uma renovada reflexão urbana. Muito Bom!

Cumprimentos.

10:45 da manhã, novembro 18, 2006  
Blogger Juom disse...

Tinha escrito aqui um comentário de manhã que, por problemas com o blogspot, parece que acabaram por não chegar, portanto vou ver se me lembro do que disse na altura, quando estava com algum sono ainda:

Penso que, no geral, o universo Scorseseano é bastante masculino - com algumas honrosas excepções, sendo Alice Já Não Mora Aqui a mais óbvia - mas penso que isso mesmo é capaz de atrair elementos do sexo feminino em relação à sua obra. Por exemplo, a minha namorada gosta do seu cinema. Acho que ainda há esperança ;-)

6:18 da tarde, novembro 18, 2006  
Blogger C. disse...

Só comento a parte finalíssima do teu texto, porque o resto evitei ler (só vou ver o filme amanhã) ;)

Não é por 2 exemplos que podes generalizar. Se quiseres contrapor a balança - eu sou rapariga e adoro Scorsese! Adoro!

11:40 da tarde, novembro 18, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

Obrigado, Wasted: respondeste da forma enfática como eu acho que qualquer provocação deve ser respondida.

1:51 da manhã, novembro 19, 2006  
Blogger C. disse...

De nada... (deixo as reticências para não passar por enfática de novo).

Quanto a Scorsese, o universo pode ser masculino mas isso não tem necessariamente de significar que só agrada ao universo masculino dos espectadores.

1:28 da manhã, novembro 20, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

Concordo plenamente, Wasted. Foi só uma pequena provocação. È óbvio que nunca achei que não houvesse mulheres a gostar de Scorsese.

1:49 da manhã, novembro 20, 2006  
Blogger Ricardo Lopes Moura disse...

o universo de scorsese não é masculino nem feminino, é um universo morto e esgotado de talento.

com mais coerência e um discurso mais corrido, podes ler a minha opinião em www.axasteoque.com

se quiseres.
um abraço

12:03 da manhã, novembro 21, 2006  
Blogger Ricardo Lopes Moura disse...

Oooops, enganei-me a escrever o meu blog, erro crasso, faltou-me o patrocinador: www.axasteoque.blogspot.com

Agora, sim.

Espero ver-te por lá. Um abraço

2:55 da manhã, novembro 22, 2006  
Blogger sandra torres disse...

Não vamos ser tão totalitários...Há filmes de Scorcese dos quais gostei bastante. Posso até enumerá-los: The Age of Innocence (1993);The Colour of Money (1986), grande Paul Newman; e o inevitavelmente fabuloso e que me é tão querido New York, New York (1977).

Até já***

5:34 da tarde, novembro 26, 2006  

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