quinta-feira, março 23, 2006

Diz-me como matas...


David Cronenberg habituou-nos a obras tão estranhas, que, nos últimos dez anos, a estranheza das suas obras reside na ausência de mutações, lacerações e traumas clínicos. Paradoxalmente, este novo A History of Violence é, juntamente com M Butterfly, a mais cabal demonstração do seu carácter autoral.
Nos meandros do subgénero “americana”, histórias de luta e, muitas vezes, aceitação dos paradigmas e imposições da “small town america” (ver All That Heaven Allows de Douglas Sirk ou Letter to Three Wives de Joseph L. Mankiewicz), conta a história de uma família em crise quando, depois de aniquilar dois assaltantes do seu café, o patriarca Tom Stall (brilhante Viggo Mortensen) é visitado por misteriosos forasteiros que afirmam conhecê-lo de outros tempos e de outro local. Seco, despojado, mas com um virtuosismo impar no uso constante do travelling e das imagens de grua, choca pelo "insight" que Cronenberg coloca nas suas personagens. A perspectiva adoptada é sempre a da família, e dos efeitos que a descoberta nela provoca. A visão política aqui subjacente (o desabar de uma certa ideia de América onde é sempre possível recomeçar e onde se encontra a paz pastoral ausente da civilização), é possível porquanto colide com a ideia de comunidade, maior ou mais pequena, aqui enraizada. As comunidades formam-se na base dos consensos, e a personagem de Ed Harris vem pôr em causa esse consenso.
Segue-se um prodigioso jogo de identidades, que, aqui, aparecem como uma curiosa forma dialéctica, de tese, antítese e síntese, com as sucessivas encarnações de Stall nas suas diversas personalidades, até ao final abrangente, irreal de tão idílico. Esta é, no fundo, uma história de metamorfose e re-metamorfose de identidades, com espaço para violência gráfica e até sexo animalesco. Conhecem temas mais "cronenberguianos"?
(lembre-se o leitor que, se o texto parece anoréctico, é apenas para lhe manter o apetite)

Etiquetas:

segunda-feira, março 06, 2006

A Teoria do Caos


Munique é assustador. Nele, Steven Spielberg assume não o medo, não a raiva, não o preconceito, mas a tristeza como característica essencial do nosso tempo. É um filme assombrado por aquilo que permitiu o desenrolar da violência, pelo sentimento imperioso, de ambos os lados, de vingar o que quer que tenha acontecido, redundando no perpetuar do conflito. Em suma, apresenta-se como uma das obras mais importantes dos nossos dias, pela sua isenção, pela sua intervenção no presente, pelo seu desejo de paz duradoura que permita um futuro.
Será esta história de um grupo de operacionais da Mossad (serviços secretos israelitas) encarregues de matar os alegados perpetradores e planeadores dos atentados terroristas que mataram onze atletas israelitas nos Jogos Olímpicos de 1972, um típico filme de Spielberg? Se isso existe, é e não é. Spielberg peca amiúde pela ausência de coragem moral, pela vontade constante de aplacar os demónios adjacentes às suas histórias, de atar pontas soltas com uma mediania crente no equilíbrio do Universo. Munique é a sua teoria do caos, não apenas no sentido científico de uma relação extrema de causa e efeito (que também existe), mas no sentido de uma total falta de fé na bondade, de uma total crença em Infernos irredimíveis para os homens. Também por isso, é um filme que dispensa quaisquer artifícios espectaculares, e onde a estética da violência existe apenas para sublinhar o seu lado terrível.
Em abono da verdade, Spielberg não é tematicamente unidimensional, e filmes como Parque Jurássico e Amistad, ainda que falhados, provam uma tentativa constante de pegar pelos cornos temas “filosoficamente”importantes. Inclusivamente, A.I., Relatório Minoritário e A Guerra dos Mundos (três filmes fantásticos) deram à sua obra uma negritude mimética do inconsciente colectivo contemporâneo. Mas neste seu último opus o norte-americano (por vezes, demasiado norte-americano) atinge o sublime, no sentido aristotélico do termo, de uma forma que expande inclusivamente o que já tinha feito com A Lista de Schindler. Em Munique, o terrível aparece com uma intensidade e uma humanidade que destrói quaisquer crianças de vermelho num filme a preto-e-branco. Quando, depois de matarem brutalmente uma prostituta assassina que, aliás, não era um alvo no contrato, o grupo de homens seguidos a deixa nua apenas como estratégia de humilhação, sabemos que ali estão seres humanos cujas debilidades são exacerbadas pelo estado do mundo. Presentemente, não seremos todos assim?
Nestas quase três horas, Spielberg prova uma verdade universal: quando se é atacado por ambos os lados de um conflito, está-se no sítio certo. Se este blog desse notas, estaria encontrado o único filme dos últimos tempos que merecia um valor mais do que a nota máxima.

Etiquetas:


Free Hit Counter