Diz-me como matas...
David Cronenberg habituou-nos a obras tão estranhas, que, nos últimos dez anos, a estranheza das suas obras reside na ausência de mutações, lacerações e traumas clínicos. Paradoxalmente, este novo A History of Violence é, juntamente com M Butterfly, a mais cabal demonstração do seu carácter autoral.
Nos meandros do subgénero “americana”, histórias de luta e, muitas vezes, aceitação dos paradigmas e imposições da “small town america” (ver All That Heaven Allows de Douglas Sirk ou Letter to Three Wives de Joseph L. Mankiewicz), conta a história de uma família em crise quando, depois de aniquilar dois assaltantes do seu café, o patriarca Tom Stall (brilhante Viggo Mortensen) é visitado por misteriosos forasteiros que afirmam conhecê-lo de outros tempos e de outro local. Seco, despojado, mas com um virtuosismo impar no uso constante do travelling e das imagens de grua, choca pelo "insight" que Cronenberg coloca nas suas personagens. A perspectiva adoptada é sempre a da família, e dos efeitos que a descoberta nela provoca. A visão política aqui subjacente (o desabar de uma certa ideia de América onde é sempre possível recomeçar e onde se encontra a paz pastoral ausente da civilização), é possível porquanto colide com a ideia de comunidade, maior ou mais pequena, aqui enraizada. As comunidades formam-se na base dos consensos, e a personagem de Ed Harris vem pôr em causa esse consenso.
Segue-se um prodigioso jogo de identidades, que, aqui, aparecem como uma curiosa forma dialéctica, de tese, antítese e síntese, com as sucessivas encarnações de Stall nas suas diversas personalidades, até ao final abrangente, irreal de tão idílico. Esta é, no fundo, uma história de metamorfose e re-metamorfose de identidades, com espaço para violência gráfica e até sexo animalesco. Conhecem temas mais "cronenberguianos"?
(lembre-se o leitor que, se o texto parece anoréctico, é apenas para lhe manter o apetite)
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