sexta-feira, julho 29, 2005

Clássicos Esquecidos - I


Poucos filmes, pelo menos dos que compõem a minha relação com o cinema, demonstram de forma tão inequívoca a moral podre das suas personagens como O Conformista (1970) de Bernardo Bertolucci. Centrado em Marcello Clerici (Jean-Louis Trintignant), educado e elegante filho da puta ao serviço do fascismo italiano antes da Segunda Guerra Mundial, é também uma cabal ilustração do axioma marxista "o ser determina a consciência".
Clerici é um jovem funcionário da polícia política fascista, atormentado pelo assassínio de um pederasta que o quis violar. Perante essa mácula, deseja ardentemente a normalidade mais mesquinha e mais banal, que passa pela submissão do indivíduo à opressiva máquina estatal. Contudo, como o próprio Moravia já tinha dito do seu romance, não há qualquer personagem na qual o espectador possa depositar a sua simpatia e a sua confiança. Assim, a Itália daquele tempo aparece como uma gigantesca corja de conformistas, entre Giulia (Stefana Sandrelli), a esposa pequeno-burguesa, Anna, que se entrega a Clerici para tentar salvar o marido (tórrida Dominique Sanda), ou o cão-de-fila Manganelli (Gastone Moschin), gente sem engenho ou vontade de pensar e resistir, no que até são piores que Clerici, que percebe a perversão do regime em que vive. Talvez, no entanto, a frase-chave seja proferida pelo louco pai de Clerici, que, dentro da sua camisa-de-forças diz: "Se o Estado não se molda à imagem do individuo, como pode o individuo moldar-se à imagem do Estado?"
Como se percebe do parágrafo anterior, Bertollucci não poupa nunca o espectador à complexidade da inserção da pessoa no mundo político que o rodeia. Por isso mesmo, pelos traços das personagens e pela forma do filme, cujo experimentalismos se assemelha a um delírio febril mais do que a qualquer progressão narrativa linear, O Conformista é não um lamento, mas um violento ajuste de contas com um passado nacional, onde os símbolos e os significados produzidos servem de projéctil para uma arma que é o cinema. Para quem queria fazer este filme para provocar o "revolucionário" Jean-Luc Godard, nada mau...

Etiquetas:

Em Gotham, nada de novo (e nada de bom...)


Acerca de Batman Begins, encomenda levada a cabo por Christopher Nolan, duas questões gerais se levantam:

a) a prequela é o menos imaginativo e mais traiçoeiro meio de regressar a algo já feito, dado que já se conhece de antemão o desenvolvimento do que se está a ver. Por um lado - pecado capital - a introdução tende a ser dada fora de tempo. Por outro lado, perde-se o ténue equilibrio que deveria estar patente em todos os filmes, entre a força de momentos que agarrem a atenção (essa foi agarrada pelo filme que saiu primeiro) e os necessários motivos para exploração ampla e pessoal dos parametros do universo em causa (já explorado nos filmes iniciais). Só um golpe de asa biblico fará a empreitada chegar a bom porto.

b) será possível fazer uma crítica verdadeiramente individual depois de se ler dezenas de críticas a um objecto? Não poderá a crítica ter uma influência perniciosa no leitor , ao inundá-lo de opiniões numa altura em que este não viu o objecto e, como tal, se encontra permeável a influência subreptícia?

Sim, Batman Begins é desinteressante e sim, concordo com a maioria das opiniões que li. É desinteressante devido ao desbaratar do carácter autoral de Nolan, que em Memento e Insónia dava mostras de uma saudável obsessão com mentes pouco saudáveis. É desinteressante porque não acrescenta nada ao panteão de genealogias do Homem-Morcego, onde figuram nomes como Frank Miller, Allan Moore e Tim Burton. E é desinteressante porque perpetua a transformação do herói mais silencioso de todos, taciturno e ensimesmado, num orgíaco demolidor explosivo, não deixando, inclusivamente, de acrescentar a este um muito dispensável toque trash (Batman treinado por Ninjas?)

A ver só para aproveitar o ar condicionado da sala.

Etiquetas:

terça-feira, julho 19, 2005

"A Guerra dos Mundos"

Com A Guerra dos Mundos, Steven Spielber prossegue o seu inexorável trajecto em direcção a terrenos de uma negritude quase palpável. O percurso foi talvez iniciado com A Lista de Schindler, que já leva mais de dez anos, mas foi aprofundado desde A.I. (2001), com apenas uma paragem em Terminal de Aeroporto (2004). Ressalve-se que não se entende por trajecto em direcção à negritude um simples enumerar do tema, que nunca foi escondido de filmes como E.T. (1982) ou, logicamente, Parque Jurássico (1994), mas antes um maior estudo das suas matizes, um interesse mais premente em apreender o seu funcionamento. A Guerra dos Mundos prossegue e aumenta a intensidade desse trajecto. Porquê? O cineasta já afirmou por diversas vezes: os tempos prestam-se a isso.

O 11 de Stembro marcará indelevelmente o imaginário de várias gerações de americanos, mas poucos foram os cineastas que pegaram no tema pelos chifres. Antes de Spielberg, só Spike Lee, no seu A Última Hora (2003). Mas enquanto Lee transformou a data num cálvario pessoal, misto de violência física e jeu de massacre com fim na expiação, Spielberg, politicamente mais ortodoxo, transformou-a numa celebração da sobrevivência, do direito a uma diferença dos povos. Não deixou, no entanto, de se reservar o direito de assustar o espectador, sobretudo através do sentimento, objectivo, universal e claustrofóbico, de fuga desenfreada sem quaisquer garantias de sucesso face a um perigo invisível, inaudível e ubíquo. O trajecto das personagens é linear, mas dentro desa linearidade esconde-se a impotência e os primários reflexos humanos, duas componentes importantíssimas do pânico. O desabar dos edificios e o pó levantado revelam a pureza do ser.

Clássico, Spielberg empresta ao seu filme a mais importante característica da ficção científica, a recorrência que a torna um género já clássico: uma constante preocupação com o presente, onde o futuro ou a espectacularidade mais não são do que meros mcguffins. Mais importante ainda, polvilha pelo fime pedaços de lirismo, como a sublime sequência em que Cruise sai da casa de Tim Robbins para encontar a planicie da Land of Hopes and Dreams coberta de vermelho-sangue. Se há cena que assine um filme, essa é definitivamente uma.

O que é que, então, faz com que o filme não dê o salto e não seja uma das obras maiores do cineasta americano? Essencialmente, dois factores: por uma lado, a constante preocupação com a família , presente em todas as obras do cineasta, começa a assemelhar-se a uma chapa-quatro, utilizável em todas as situações e mais algumas para conferir a necessária marca autoral. Por outro, Tom Cruise dificilmente encarna na perfeição o herói springsteeniano desejado, demasiado preso ao seu sorriso afável e à sua personalidade de maridinho da América. Aliás, na promoção ao filme, o actor prefere focar a sua admiração por Spielberg, do que o substrato politico ou temporal presente na obra. E se a obra a isso sobrevive, é porque esse substrato é verdadeiramente assinalável.

Etiquetas:

quinta-feira, julho 07, 2005

O Fim da Aventura (embora na realidade seja o princípio...)

George Lucas tem, reconhecidamente, mais mérito como demiurgo do que como cineasta. A saga Star Wars marca o imaginário de várias gerações não por ser um portento de mestria cinematográfica (Lucas nunca soube realizar, e a saga voou mais alto quando Irvin Kirschner dirigiu O Império Contra-Ataca e O Regresso de Jedi ), mas sim por criar figuras e locais estranhos e maravilhosos, nunca descurando o diálogo com padrões modernos e pós-modernos de organização social e política. Nomeadamente, as prequelas Star Wars tratam a luta pela liberdade e as constantes ameaças à democracia, que, ao invés de acabar com a opressão, lhe serve frequentemente de antecâmara.

No caso de A Vingança dos Sith, o episódio III, a vida política americana dos últimos cinco anos ensombra toda a trama. Esta é, no fundo, a história dos estabelecimento de uma hegemonia através da acção de um jovem, inocente, frustrado e vaidoso, mas também cego por amor. É, em suma, a história de alguém a quem sobra o poder, mas falta o discernimento.

Por tudo isto, o Episódio III é uma brutal e voraz descida aos Infernos, o momento de total e irrevogável corrupção interior, que bate aos pontoss, por muito fácil que tal seja, ambas as prequelas anteriores. Contudo, tamanha exaltação do sublime, do terrível rodeado de beleza, perde um pouco perante o amadorismo do trabalho de Lucas, sobretudo quando desbarata o talento de actores como Samuel L. Jackson e Natalie Portman, e quando coloca nas personagens frases absolutamente pobres e constrangedoras.

A memória, no entanto, oblitera esses pormenores, substituindo-os por uma aventura de sopro épico, por força pictórica e por uma personagem (Anakin Skywalker) em perdição absoluta. Se todos os filmes da segunda saga (em termos de saída em sala) fossem deste calibre, Lucas seria visto como mais do que um entertainer e um homem de negócios...

Etiquetas:

Tempo para Viver e Tempo para Morrer

O mais curioso em Mar Adentro, de Alejandro Amenabar, é o facto de este apresentar a eutanásia como uma questão de vida. Por outras palavras, o filme nunca questiona o valor sagrado da vida, e o dever do indivíduo em honrá-la. Ainda assim, a sua posição é a de que o indivíduo deve decidir o que fazer com a sua vida, dado que esta dádiva é sua propriedade privada.

Ao narrar os anos finais da vida de Ramón Sampedro, um marinheiro espanhol preso à sua cama devido a um mergulho imponderado e que, consequentemente, trava uma batalha física e moral, durante trinta anos, para terminar a vida que não pode honrar ou disfrutar de forma digna, Amenabar nunca esquece que qualquer visão de uma obra social ou politicamente empenhada é moldada por valores e crenças pessoais. Assim, escolhe encetar um estudo psicológico de Sampedro, no que se transforma no pior defeito do filme, dado que estes artifícios são sempre demasiado óbvios para serem eficazes. O espectador é inundado de estimulos sentimentais, que vão desde a banda sonora, um misto melodramático de harmonias celtas e sons frequentemente apropriados e tocantes, mas também por vezes lamechas e exagerados, até à metáfora do mar como lugar de liberdade, gasta desde que Moby Dick foi publicado.

Contudo, os elogios merecidos por Mar Adentro vão inteirinhos para um factor emocional: o desempenho de Javier Bardem. Sem qualquer surpresa, o actor espanhol transpira credibilidade, e, como foi demonstrado em Em Carne Viva de Pedro Almodóvar e em Às Segundas ao Sol de Fernando Léon de Aranoa, foi abençoado com uma intuição capaz de tornar comovente uma leitura da lista telefónica. Embora desempenhe o papel de um tetraplégico, nunca resvala para qualquer tipo de maneirismo, e demonstra um imenso poder emocional apenas com a face, a voz e, sobretudo, com os olhos.

É importante referir que várias pessoas que privaram com Sampedro louvaram o retrato que dele é feito em Mar Adentro. Sampedro nunca é visto como uma figura ao serviço de um programa moral ou ideológico, mas antes como uma pessoa, com as suas frustrações, os seus deveres para com a sua familia e feroz na perseguição do seu objectivo: morrer. Esta contradição é, essencialmente, a fonte de interesse da personagem, pois esta nunca perdeu a sua joie de vivre.

No competo geral, Mar Adentro é um filme tocante, sobretudo devido ao seu actor principal, e não tanto devido à influência do realizador. Aliás, este filme parece ser um passo atrás na carreira de Amenabar, dado que a sua obra anterior, Os Outros (2002) era um thriller psicológico impecavelmente dirigido, e falha em transmitir a vitalidade que filmes como Tese (1996) e Abre os Olhos (1999) mereciam, mesmo se demonstra a capacidade de transmitir uma visão através de imagens de grande beleza e retratar muito capazmente acção em espaços fechados - neste caso, o quarto de Ramon Sampedro. Se o filme é um sucesso, provavelmente deve-o a Javier Bardem.

Etiquetas:


Free Hit Counter