domingo, agosto 06, 2006

Ensaio - Era Uma Vez Na América - 3. A Metafísica do Tempo




Quando Noodles sai da prisão, guarda em si a esperança de um mundo cristalizado. Espera encontrar a mesma organização criminal pueril, o mesmo objecto do desejo infantil em Deborah, as dificuldades do costume. Encontra antes uma organização em crescimento, uma amada trabalhando para o estrelato e um mundo de prosperidade criminal. O choque entre o desejado e o encontrado é semelhante ao confronto acima referido entre a visão tida por Leone da América e a sua experiência real com americanos. Essencialmente, o problema reside no facto de Noodles não ter mudado, ao contrário do que aconteceu com Max e Deborah. O percurso encetado pela personagem principal, culminado na denúncia, é então, uma tentativa desesperada de manutenção do estado de coisas. No entanto, Leone opta, na tradição do gangster movie, por dar laivos de tragédia á história, que residem no efeito da passagem do tempo nas personagens e nas relações entre elas. Para Noodles, essa passagem acarreta perda, na medida em que demonstra a impossibilidade do regresso ao paraíso perdido da sua infância, o que traz consigo o fim da amizade entre Max e Noodles e a impossibilidade da concretização do amor por Deborah.

Na visão de Leone, outro resultado da passagem do tempo é o fim da ideia de sonho americano. A ascensão pessoal de um indivíduo em direcção ao bem-estar e à importância no seio de uma comunidade foi substituída pela organização hierárquica da sociedade, baseada na violência e no monopólio económico. A decadência espiritual de Max quando este é reencontrado por Noodles em 1968 mostra isso: quem está no poder é um gangster, que, ademais, tratou de roubar todos os desejos do melhor amigo, e entregar-se à corrupção em lugares de responsabilidade. Não por acaso, Noodles sempre foi contra essa associação entre o seu grupo e os ricos e poderosos, preferindo a vivência de “vigarista de bairro”. Ele próprio afirma: “I like the stink of the streets. It opens up my lungs.” Igualmente propositada é a forma como, no final do filme, God Bless America, tema escrito por Irving Berlin para exacerbar as qualidades da América em véspera da entrada norte-americana na Primeira Guerra Mundial, adquire um tom irónico e até triste.

Ainda assim, as referências históricas literais ao passado dos Estados Unidos são mantidas ao mínimo, e o próprio conflito sindical resolvido com a ajuda do grupo é descrito em termos muito gerais. Símbolos como o relógio de ouro ou o número 35, o número de anos de ausência de Noodles escrito num dos lados do camião do lixo para onde Max supostamente salta tratam, ao invés, de estender a noção de perda associada ao tempo a uma dimensão metafísica. Todos os intervenientes aparecem em 1968 cansados, desanimados e, com a excepção de Deborah e Max, que iniciaram uma relação, todas perderam o contacto entre si. Todos perderam algo com o passar dos anos, seja saúde, bem-estar económico ou tranquilidade de consciência. O escape para esta situação é, então, a memória, o espaço de protecção por excelência das personagens. A luta de Noodles, sobretudo, é a de não perder essas memórias com o que descobre em 1968. Para isso, precisa inclusivamente de não ver o escroque diante de si agora chamado Mr. Bailey como o seu amigo de infância. Perante a cena em que visita Deborah nos bastidores do teatro onde esta representa Shakespeare e onde a frase “Age cannot wither her” aparece como singular descrição da forma como um vê o outro (a actriz Elizabeth McGovern não aparece envelhecida); até se dúvida da sua capacidade em matar o seu passado. Morreria, tal como parte de si morreu quando teve de fugir. “I’ve been going to bed early [for thirty-five years]” é uma frase de reminiscências “proustianas” sintomáticas (Em Busca do Tempo Perdido abre com a frase “Durante muito tempo, deitei-me cedo.”).

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