segunda-feira, julho 24, 2006

A Genealogia da Moral


Não sei, sinceramente, porque me deixei levar pelo truque de Rope, pois não o posso considerar de outra maneira que não um truque. (…) Actualmente, quando penso nele, dou-me conta de que era completamente estúpido porque rompia com todas as minhas tradições de e renegava todas as minhas teorias sobre a fragmentação do filme e as possibilidades da montagem para contar visualmente uma história.

Alfred Hitchcock


Não há, à partida, “suspense” típico neste Rope (1948). Por um lado, já sabemos que houve realmente um homicídio. Por outro, a moral hollywoodiana, cujo “braço armado” era a censura ancorada no Código Hayes, impedia que os criminosos escapassem à justiça. Não é à toa que “o crime não compensa” é uma máxima com tantos exemplos fílmicos. Rope torna-se assim uma experiência, um exercício de estilo que, na sua dificuldade mas também na forma enxuta como é realizado, só encontra paralelo, na obra do realizador, em North By Northwest (1959). Nele, o mestre experimenta duas técnicas, interrelacionadas, que voltariam à sua obra em momentos futuros (Under Capricorn, 1949 e Dial M for Murder, 1954), a saber: o plano sequência e a concentração espacial do teatro, derivada da unidade de espaço da poética aristotélica. Ambas estão relacionadas na medida em que, numa peça de teatro, a acção é bastas vezes contínua, não havendo, a não ser por efeito das luzes, e propositadamente, interrupção entre as cenas. Ora, o plano sequência consiste precisamente em filmar uma cena em contínuo, sem edição ou “inserts”. Rope passa-se todo dentro de um apartamento (com excepção dos créditos iniciais, passados na rua), é derivado de uma peça teatral e Hitchcock tentou fazê-lo num só “take”. Esbarrou nas limitações técnicas da sua época, nomeadamente na duração estanque (dez minutos) de cada bobine, o que provocou o menos conseguido artificio deste filme, o enfoque nos casacos dos personagens masculinos aquando do fim de uma bobine e o principio de outra, por modo a dificultar a noção do corte, mas resultando precisamente no contrário. Adicionalmente, diga-se que a filmagem foi complicadíssima, sendo necessário mover a câmara, pesadíssima por filmar em “technicolor”, numa constante sequência de “travellings” e panorâmicas, que obrigaram inclusivamente a que o cenário tivesse todo rodas, para que esta se pudesse deslocar livremente. No fundo, Hitchcock tentou criar um meio adequado para contar uma dada história, num método que é parte integrante de um processo de adaptação literária. Não existe, então, um falhanço de Hitchcock, mas sim uma demonstração óbvia do que significa, em termos práticos, estar-se à frente do seu tempo. Uma vantagem esta técnica tem certamente: é impossível ver este filme e não passar a saber todas as variações possíveis dos movimentos de câmara acima referidos. E está, enquanto filme, quilómetros acima do único filme até hoje feito num só plano, The Russian Ark de Alexandre Sukurov, que é chato como a potassa.
Aquilo que a frase de Hitchcock não diz é que este é também um dos filmes mais densos, em termos de conotações morais e filosóficas, da carreira do realizador. Subjacente a toda a história de dois rapazes, homossexuais (de acordo com os criadores do filme, mas cuja sexualidade acaba, depois de Àlmodovar, por ser um pouco diluída pela forma e pela moral do filme), que assassinam um amigo porque o podem fazer e pela emoção do acto e da impunidade, está toda a filosofia nietzschiana do super-homem, e da moral como uma formatação comportamental necessária apenas para guiar os mais fracos. O homicídio é, neste contexto, não só uma experiência artística, como também uma curiosa forma de regulação social, útil para fazer fluir a vida em sociedade. Neste aspecto, um pormenor é basto importante: Rope é a história de um desejo de vitória que se desmultiplica em duas derrotas: a dos dois jovens adultos (um brilhante e sanguinário John Dall, protótipo do assassino a um tempo terrível e encantador, e um Farley Granger com a sua tradicional fragilidade elevada à potência dez e regada em álcool), incapazes de levar a cabo o plano que tão sobranceiramente tinham concebido e, a mais trágica, a do professor interpretado por James Stewart (a iniciar, no pós-guerra, o seu percurso em direcção à negritude), que falha, humana e culturalmente, na formação dos seus alunos, e, pior do que isso, vê as concepções teóricas de uma vida destruídas pela crueldade da prática. À boa maneira de Hitchcock, nenhuma das personagens principais de Rope, mesmo aquela que desata a intriga, é o “bom da fita”. A fita, essa, como de costume em Alfred Hitchcok, é muito boa.

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3 Comentários:

Blogger Daniel Pereira disse...

De facto, um Hitchcock menor que, como disseste, é muito bom. Muito bem colocada a citação, já que, não obstante a qualidade do teu texto, Hitch resume aquilo que enfraquece o filme.

1:05 da tarde, julho 24, 2006  
Blogger Hugo disse...

Confesso que gosto particularmente desye "rope".

Sobretudo porque e sempre bom ver a rotunda asneira que é levar à letra a ideia do "Übermensh" do Nietszche. Dito de outro modo, o Hitch reproduz ali a asneira que os ideólogos nazis divulgaram em dado momento. Nietzsche não é, nem de longe nem de perto, aquilo.

Para além do mais, todo o suspense, chamemos-lhe assim, moral é construído com a mestria que todos reconhecemos ao Hitch.

Abraço!

3:30 da tarde, julho 24, 2006  
Blogger Ricardo disse...

Há dias revi um pouco do filme na tv. Rope parece ter adquirido um charme retro com o passar do tempo, com aquela conversa toda à volta da arca, aqueles valores, aqueles temas filosóficos, aquelas lascas da guerra; ao mesmo tempo que tenta fazer sobressair tensões homossexuais numa época em que era uma temática impensável.

Outra singularidade é o facto de o filme ser mais apreciado hoje em dia, do que na data da estreia. Imaginem a reacção das pessoas em 48 ao verem uma estranheza destas em takes de 10 minutos.

4:29 da tarde, julho 24, 2006  

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