quinta-feira, julho 20, 2006

O Amor nos Tempos de Cólera



Abençoado ciclo “Um ano de cinema(s)”, que me permitiu ver I Heart Huckabees de David O. Russell. História de gente em queda livre, pessoas que compreendem, à maneira de La Haine (Mathieu Kassovitz, 1994), que o problema da nossa sociedade reside não na queda, mas no impacto iminente, é uma humanista e lúcida comédia sobre o choque do individuo contra a sua impotência perante o curso, bastas vezes errado, da História.

Nem sempre esta sátira é esperançosa. Aliás, apenas no final, com a descoberta da reciprocidade das relações humanas, a acção individual parece prefigurar a esperança. Mas lida com os momentos de dúvida, de necessidade de auto-conhecimento, com o niilismo como solução fácil, e a porta que estes abrem para a aceitação e eficiência do papel individual na construção e mudança do mundo. Para o fazer, apoia-se numa história, no mínimo dos mínimos, bizarra: Lili Tomlin (excêntrica como sempre, com a competência do costume) e Dustin Hoffman (cada vez mais apostado em brincar com a sua imagem de actor sério e “metódico”) são detectives que visam perceber e resolver as maleitas psicológicas dos seus clientes. Um dia são contactados por Jason Scwartzman (o Holden Caulfield dos tempos modernos), presidente de um núcleo local de uma associação ambientalista prestes a ser exonerado, que sonha em matar os seus inimigos a golpes de machete. Este conhece um neurótico bombeiro (Mark Whalberg a mostrar o actor que pode ser), traumatizado com “aquela coisa de Setembro” e envolve-se com uma niilista francesa (‘pera aí, era a Isabelle Huppert, não era?), etc. etc. etc.

Denso e filosófico, com espaço para o existencialismo brutal de um Houelbecq paredes-meias com os travellings de P. T. Anderson circa Magnólia (1999) e o onirismo do Michel Gondry de The Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2003), mostra um realizador não só em pleno domínio da sua arte, como também alguém capaz de manipular diversas referências culturais e transformá-las em algo pessoal (brilhantes as sequências de anúncios publicitários em que a personagem de Naomi Watts é prostituída como carne num talho). É um elixir para a alma de quem observa, impotente, a iniquidade impune a desenrolar-se no Líbano e o progressivo aquecimento global. Um dia, talvez com a ajuda de alguns críticos revisionistas, Russell, também autor do belíssimo Three Kings (1999), venha a ser considerado tão importante para esta nova geração do cinema americano quanto Sofia Coppola.

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