segunda-feira, maio 15, 2006

Carta Aberta a Hugo Alves


Caro Hugo Alves:

Há algum tempo publicaste no teu blog (http://wwwamarcord.blogspot.com/) um loquaz artigo intitulado Função social do Cinema? Nele, se bem o entendi, começas por afirmar que tudo tem uma função social, e o cinema não é excepção. Posteriormente, declaras o teu gosto pelos modelos narrativos e estéticos neo-realistas, devido aos valores humanos que perpassavam as obras dos diversos realizadores. Terminaste dizendo que talvez a maior função social do cinema fosse demonstrar amor ao Cinema, contribuindo para a perpetuação do meio. O cinema é Cinema somente quando conhece, utiliza capazmente e homenageia o meio em que se inscreve.
Pois bem, venho por este meio contestar alguns pontos do teu texto, nomeadamente aqueles que se relacionam com o neo-realismo.

Começo por dizer que nenhum filme pode valer-se única exclusivamente de uma qualquer ideia de intervenção social e política como afirmação estética. Aí, o exemplo cabal do neo-realismo é preponderante. A importância deste género justifica-se pela forma como, na sua época, foi o mais eloquente vector de um dos desejos básicos do cinema: a capacidade de mostrar a própria vida, sem concessões e sem embelezamentos fúteis. O neo-realismo propunha-se assim a eliminar o mimetismo e, logo, o simulacro, e a inscrever um pedaço de vida numa série de quadrados de celulóide. Nada contra, não fora o facto de, por exemplo em Roma Cidade Aberta, Rossellini ter utilizado, parafraseando Eric Rohmer, a falta de imaginação como argumento artístico. A importância histórica ninguém lha tira; muitos já a ultrapassaram. Fora os "fait-divers" (a rodagem em cenários naturais e com som directo, por exemplo), pouco resta de opção estética verdadeira por parte do italiano. Não por acaso, são muito mais interessantes os filmes do italiano sobre algo que bem conhecia – a sua relação com Ingrid Bergman.

Naturalmente, toda essa estética foi brindada com elogios por parte dos turcos dos Cahiers – nesse modo de filmar radicava uma posição perante o mundo. Acontece que, no meio dessa nova posição, esqueceu o Cinema. Os turcos que tanto o elogiaram ultrapassaram-no, ao tornarem cada objecto em noventa minutos mistos de idiossincrasia formal e intervenção social. Para o fazer, é inclusivamente necessário, como ainda hoje faz Godard e muito bem, tornar o mundo numa realidade meta-cinematografica. É necessário aproveitar ao máximo o aparato totalitário do cinema, aproveitando assim as suas possibilidades de comunicação (aqui, quem quiser poderá ver manipulação). Toda a comunicação implica consenso, mas também implica algo de individual; senão, estará condenada á partida, sob pena de futilidade. Rossellini esconde-se atrás das câmaras. Paradoxalmente, vejo mais vida nas cores sumptuosas e artificiais e nos cenários de estúdiode Michael Powell (conferir The Life and Death of Collonel Blimp, fascinante tratado sobre o envelhecimento sobre o fraccionamento de vidas pessoais em tempo de guerra), que, em toda a intervenção desrealizante do cineasta britânico, são quase tão eficazes quanto o distanciamento formal brechtiano, do que nas ruas e vielas da Roma do pós-guerra.

Por tudo isto, dir-te-ia que se o cinema, como tudo o resto, tem uma função social garantida e louvável, tem-na apenas e só quando essa função entra em comunhão profunda com todos os elementos estéticos. Não se trata de uma subvalorização dessa componente social. É apenas a lembrança de que não existe matéria sem forma. E que a auto-anulação (outro termo para objectividade, quer se fale de cinema ou de jornalismo) de si mesmo presente em parte da obra de Roberto Rosselini nada tem de benéfico. Todos conseguimos construir castelos de areia; todos temos, no entanto, de saber moldar as torres de vigia de acordo com os nossos horizontes. A função social do Cinema é, então, a de mostrar que o seu meio serve, simultaneamente, a expressão pessoal e a intervenção global. É, em suma, essa a quimera proposta pelos gémeos franceses de Os Sonhadores: um meio de conhecimento do mundo que, através da revisão contínua, permitia o conhecimento de outros (quem os fez) e, logo, eliminava a deslocação física e temporal que não estivesse já de si presente nas obras vistas. Negação da Verdade? Pois bem, a Verdade não existe, existe apenas a verdade. E um filme conseguir impor o seu ponto de vista social transcende o cinema e o Cinema: torna-o testemunha do seu tempo, da mesma maneira que as peças de Molière o são do dele. Não por acaso, à maneira de Rashomon, muitas vezes, em tribunal, as testemunhas de um processo vêem os acontecimentos de forma diferente...

Cumprimentos,
Miguel Domingues

Etiquetas:

2 Comentários:

Blogger Hugo disse...

É por isto que eu admiro este rapaz! Deixa-me recuperar das horas de sono perdidas e pensar convenientemente uns minutos que já desenvolvo melhor as ideias.

Para já, direi que talvez estivesse inebriado por algum irrealismo utópico (quiçá metodológico). Sinceramente, acho que toda e qualquer Arte tem de cumprir uma função (que pode passar pelo mero entretenimento). No caso do Cinema, sobretudo com o grande JLG, muitas vezes essa realidade é narrada através de meta-linguagens. Ver Pierrot le fou, le mépris, vivre sa vie ou masculin-féminin equivale a embarcar nessa outra realidade que, o mais das vezes, tem incluída a ideologia que tanto vou prezando (com JLG, por vezes, roça-se a obsessão).

Acontece que, o mais das vezes, sou adepto da estética neo-realista, ou como diria Bazin, do Cinema Puro (o epíteto era usado a propósito de Ladri di biciclette se a memória me não trai). De facto, essa pureza redundará na anulação da forma, já que o emoção é sobrevalorizada (actores amadores, cenários reais, etc.). Daí que tenha tentado enfatizar a necessidade de Amor ao Cinema para não levar aos excessos do neo-realismo e, simultaneamente, salientar a necessidade de utilizar, digamos, metáforas da realidade...e isso, lá bem no fundo, implica dar carta de alforria ao Cinema mostrando que este é capaz de mostrar que subsiste sozinho enquanto Arte.

A talho de foice, não deixa de ser curioso que um dos filmes supremos, através de um conjunto de personagens algo surreais, seja um dos mais fortes ataques à sociedade da sua época, mantendo-se ainda hoje actual porque os tiques sociais visados manêm-se. Obviamente, refiro-me ao genial "La dolce vita".

A ilusão, a verdade 24 vezes por segundo...seja qual for a definição que ensaiemos para "Cinema", acho que este terá de ter sempre preocupação social, não sendo apenas um mero exercício estético.

Concluindo, uma das coisas que mais gosto em Rosselini foi ter chegado ao beco sem saída: com Viaggio in Italia, mostrou o rumo a seguir, "pondo de lado" o seu passado neo-realista. Ele, melhor do que ningúém, terá avaliado os limites de uma estética, os seus cânones fechados, ultrapassando-os. E, citando Thomas Kuhn, o paradigma foi alterado, impondo-se aos que imperavam.

Continuando neste registo, não tentei erigir um paradigma, mas sim uma via de compromisso. Muito provavelmente, tê-lo-ei feito de forma não muito correcta ;)

Abraço
Hugo Alves

3:31 da manhã, maio 17, 2006  
Blogger Susana Fonseca disse...

desafio cinematográfico...

12:23 da manhã, julho 04, 2006  

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial


Free Hit Counter