segunda-feira, abril 10, 2006

Cinema Português: Praticar a Real Politik



As diatribes contra um cinema português que se crê intelectualizado ao extremo, amador e pobre enquanto entretenimento são frequentes. Para muitos, tais defeitos aparecem como uma consequência de dificuldades de produção, sobretudo de cariz financeiro, que condena, à partida, a parte de leão dos objectos cinematográficos feitos em Portugal. Para outros, o frequentemente citado divórcio entre público e produção, visível naquilo que se crê ser a fria verdade dos números, é uma consequência de uma elite cultural arrogante e pretensiosa, que prefere não ser ouvida a encetar uma simples comunicação com o público. Ambas as opiniões primam por um exagero radicalizante, que não só, quando opina sobre qualidade geral, ignora a realidade individual da obra, como opta por, frequentemente, demolir o que existe em detrimento da hipoteca criação de uma nova realidade.

À partida, importa relativizar. Um filme de Manoel de Oliveira nunca terá a visibilidade ou a rentabilidade de um filme da saga Harry Potter. O público-alvo é diferente, a estética é diferente, os motivos de interesse são, naturalmente, diferentes. Aliás, importa referir que nem Jean-Luc Godard em França nem Lars von Trier na Dinamarca, para citar dois exemplos, conseguirão ombrear com o mago adolescente globalizado. Tais países têm duas coisas que faltam ao nosso: um sistema de exportação consolidado (que no caso francês, através da UniFrance, é financiado pelo Estado), onde as verbas geradas pela exibição interna são apenas uma pequena porção do lucro final, e a noção, fulcral, de que o investimento tem de ser adequado ao seu potencial retorno. Mas, sobretudo no caso do Hexágono, existe um outro factor determinante: o aproveitamento das potencialidades criadas pelo modelo económico capitalista. Por outras palavras, uma rede de produção abrangente pode e deve ser criada através da utilização dos ganhos dos maiores sucessos para o financiamento de obras com menos público potencial.
O falhanço do cinema português reside aqui: não na criação de um cinema autoral (mesmo que, por vezes, demasiado preso ao modelo do cinema de autor preconizado pela Cahiers du Cinéma), que, com resultados desiguais, tem conseguido, em nomes como Pedro Costa, Fernando Lopes, Cláudia Tomaz ou Edgar Pêra, criar artistas relevantes, mas na criação de um cinema comercial suficientemente rentável para permitir a auto-gestão do cinema português. Aqui, seria relevante, como tanto tem referido João Lopes, a articulação com a televisão. Numa altura em que este meio assume, no contexto nacional, um gigantismo nunca antes visto em termos de produção ficcional, ainda está por fazer a adaptação cinematográfica de algumas séries de televisão de sucesso, que poderiam dar uma nova imagem à produção cinematográfica lusitana. O meio português optou por uma separação nos quadrantes de “comercial” e “artístico”, e assim definha. Não se trata de uma defesa de subprodutos, mas antes de uma racionalização de recursos, ainda que algo maquiavélica, que pode, inclusivamente, criar novos públicos para o melhor cinema. Ninguém começou por ver filmes de Ingmar Berman; todos tivemos de percorrer o nosso caminho, mais ou menos rochoso, para lá chegar. Basta que a cor da bandeira deixe de assustar.

No contexto actual, largos anos passarão antes de haver uma simbiose entre comércio e arte. Como tal, o subsídio estatal é, por agora, insubstituível, embora, como recentemente descoberto por António Pedro Vasconcellos, a quem foi negado o apoio institucional pedido, a entidade financiadora dê e tire de uma forma demiúrgica. Ao puxar o tapete debaixo dos pés do cinema português, estar-se-ia a privar algum público de uma forma cultural que, bem ou mal, lhes agrada. Contudo, um novo sistema é necessário, para que, ao contrário do cineasta de O Lugar do Morto, um autor possa ter o controlo da sua obra, e para que filmes como A Costa dos Múrmurios (Margarida Cardoso, 2004), para citar apenas um exemplo, não sejam sumariamente catalogados de “difíceis” pela mesma audiência que, em abono da verdade, prova-o a fria verdade dos números, não os viu. Para quem viu e, contra todas as expectativas, gostou, será talvez importante o apaparicar dessa imensa maioria. No final de contas, o género de “coisas” produzidas por Luc Besson nos últimos anos pode até ser bastante útil…

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2 Comentários:

Blogger Hugo disse...

Eis um texto que toca, cirurgicamente em vários pontos essenciais:

i) educação cinéfila: enquanto mantivermos a conversa de surdos do costume, não haverá uma verdadeira cultura cinéfila. "é bem" remeter Oliveira e afins para o rótulo "difíceis", de modo a obstar a o grosso da população possa interessar-se pela obra do Mestre...típico de uma mentalidade medieval digna de "o nome da rosa" de Umberto Eco;

ii) a produção de obras mais "ligeiras", inspiradas nas grandes obras da literatura seria, certamente, um bom método para incentivar a progressiva elevação da qualidade, quer dos produtos finais, quer da consciência e exigência do espectador;

iii) subsídio-dependência: nunca se soube criar uma indústria lusa do cinema. E não fosse o inefável Paulo Branco o panorama seria pior;

iv) enquanto vigorar uma "feira das vaidades", nunca teremos indústria cinematográfica. Mas não é algo apenas português: longe vãos os idos anos 50 e 60 onde, efectivamente, a Europa tinha uma indústria cinematográfica...

Estarei errado?

12:48 da manhã, abril 11, 2006  
Blogger Mafalda Azevedo disse...

Este texto merece uma atenção especial. Voltarei em breve, com mais tempo e pronta para entrar na discussão.
Até breve!

11:51 da tarde, abril 12, 2006  

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