Ensaio - Era Uma Vez na América - 2. O Filme de Gansgsters
Datado sobretudo da época da Grande Depressão, onde o seu realismo visceral era um contraponto ao escapismo presente no musical e na comédia "screwball", o filme de gangsters retratava um imaginário urbano onde este era alguém que, para cumprir as promessas do sonho americano, recorria ao crime e à violência, acabando frequentemente vergado sobre o peso dos seus actos e sobre as consequências que estes acarretam. O lado trágico destes anti-heróis, gente empreendedora e hábil presa às condicionantes do seu tempo, provocava a empatia dos espectadores provenientes das classes mais desfavorecidas, que na década de trinta constituíam a maioria dos espectadores cinematográficos.
Escrever sobre Sergio Leone é também escrever sobre uma ideia de América, que, neste caso específico, se relaciona com este género cinematográfico, tanto quanto com a literatura conhecida como pulp fiction. O próprio título assim indica, ao lembrar a frase inicial de fábulas, contos de fadas e outras fantasias, estabelecendo uma relação entre o real e o imaginário parecida com a das ficções supra-citadas, que são, na sua essência, contos morais. Tendo crescido no marasmo da governação fascista em Itália e na pobreza gerada pela Segunda Guerra Mundial, Leone encarava a América que apreendia através de livros e filmes como, simultaneamente, um escape das limitações do seu quotidiano e uma promessa de um futuro melhor. O seu contacto com americanos, aquando da libertação da Itália do jugo nazi em 1944, apagou definitivamente esta visão. Instalou-se a desilusão, gerada por episódios de tráfico de tabaco e assédio ás mulheres italianas por parte dos soldados americanos, mas não se apagou o fascínio. A visão que Leone tem da América é, então, um misto de real e de ilusão, um misto de mito e de História que redunda, formalmente, numa materialização de um universo que deriva de profunda investigação histórica, de conhecimento das representações artísticas e de uma ideologia e de uma vivência europeias, a que não são alheios os ideais marxistas. Como tal, Leone utiliza vários códigos do género nesta sua obra, a saber, entre outros: a era da “Lei Seca”, retratada por William Wellman ou Mervin LeRoy; o aspecto negocial capitalista que o crime organizado adquiriu ao longo dessa década; a loura platinada, símbolo sexual do poder dos anti-heróis; ou a omnipresença das metralhadoras Thompson, arma por excelência do criminoso dos anos trinta. Reforça, inclusivamente, o mero código, ao incluir citações directas de vários clássicos do género, nomeadamente o regresso do herói ao seu bairro de infância (Angels With Dirty Faces – Michael Curtiz, 1938), a relação de Noodles com Deborah (evocativa da relação de Eddie Bartlett com Jean Sherman em The Roaring Twenties – Raoul Walsh, 1939), ou a abertura de Little Caeser (Mervyn LeRoy, 1930), onde se lê “For they that take on the sword shall perish by the sword”, numa rima com a inscrição presente no mausoléu dos ex-companheiros de Noodles e na prisão para onde este é enviado, onde se lê “Your youngest and strongest will fall by the sword”. Contudo, a estes elementos cinematográficos junta-se uma elaboradíssima pesquisa, que incluiu não só a leitura de livros sobre o período, como a angariação de uma enorme quantidade de fotografias e a inspiração retirada de quadros de Edward Hopper, de ilustrações de Norman Rockwell ou dos desenhos e quadros de Reginald Marsh, tanto quanto a reconstituição de cenários em estúdios europeus, bem como a utilização de cenários no Velho Continente para emular os espaços existentes na Nova Iorque dos anos 20 e 30.
O que faz de Once Upon a Time in America uma obra seminal é a forma como a memória cinéfila e a memória histórica se fundem para a concretização de um objecto puramente cinematográfico. Por outras palavras, a História mais não é do que uma ferramenta para a fixação de um imaginário que lhe é externo, da mesma forma que a História foi primeiramente apreendida por Leone e por toda uma geração de cinéfilos europeus através dos filmes norte-americanos observados. É, então, uma relação simbiótica a exercida entre o cinema e a História neste contexto particular, indo beber também à experiência do cineasta. No fundo, é como se Leone concordasse com George Steiner, quando este, no seu No Castelo do Barba-Azul[2], escreve: “Não é o passado literal que nos governa, excepto, talvez, numa acepção biológica. São as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construções simbólicas do passado encontram-se impressas, quase à maneira de informações genética na nossa sensibilidade.” Em Once Upon a Time in America, genética e imagética do passado unem-se exemplarmente. Nada de surpreendente, tendo em conta que o passado e os seus efeitos são o cerne da obra.
[2] STEINER, George: No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas Para a Redefinição da Cultura, Relógio de Água, colecção Antropos, tradução de Miguel Serras Pereira, Sta. Maria da Feira, 1992, pp.13
Escrever sobre Sergio Leone é também escrever sobre uma ideia de América, que, neste caso específico, se relaciona com este género cinematográfico, tanto quanto com a literatura conhecida como pulp fiction. O próprio título assim indica, ao lembrar a frase inicial de fábulas, contos de fadas e outras fantasias, estabelecendo uma relação entre o real e o imaginário parecida com a das ficções supra-citadas, que são, na sua essência, contos morais. Tendo crescido no marasmo da governação fascista em Itália e na pobreza gerada pela Segunda Guerra Mundial, Leone encarava a América que apreendia através de livros e filmes como, simultaneamente, um escape das limitações do seu quotidiano e uma promessa de um futuro melhor. O seu contacto com americanos, aquando da libertação da Itália do jugo nazi em 1944, apagou definitivamente esta visão. Instalou-se a desilusão, gerada por episódios de tráfico de tabaco e assédio ás mulheres italianas por parte dos soldados americanos, mas não se apagou o fascínio. A visão que Leone tem da América é, então, um misto de real e de ilusão, um misto de mito e de História que redunda, formalmente, numa materialização de um universo que deriva de profunda investigação histórica, de conhecimento das representações artísticas e de uma ideologia e de uma vivência europeias, a que não são alheios os ideais marxistas. Como tal, Leone utiliza vários códigos do género nesta sua obra, a saber, entre outros: a era da “Lei Seca”, retratada por William Wellman ou Mervin LeRoy; o aspecto negocial capitalista que o crime organizado adquiriu ao longo dessa década; a loura platinada, símbolo sexual do poder dos anti-heróis; ou a omnipresença das metralhadoras Thompson, arma por excelência do criminoso dos anos trinta. Reforça, inclusivamente, o mero código, ao incluir citações directas de vários clássicos do género, nomeadamente o regresso do herói ao seu bairro de infância (Angels With Dirty Faces – Michael Curtiz, 1938), a relação de Noodles com Deborah (evocativa da relação de Eddie Bartlett com Jean Sherman em The Roaring Twenties – Raoul Walsh, 1939), ou a abertura de Little Caeser (Mervyn LeRoy, 1930), onde se lê “For they that take on the sword shall perish by the sword”, numa rima com a inscrição presente no mausoléu dos ex-companheiros de Noodles e na prisão para onde este é enviado, onde se lê “Your youngest and strongest will fall by the sword”. Contudo, a estes elementos cinematográficos junta-se uma elaboradíssima pesquisa, que incluiu não só a leitura de livros sobre o período, como a angariação de uma enorme quantidade de fotografias e a inspiração retirada de quadros de Edward Hopper, de ilustrações de Norman Rockwell ou dos desenhos e quadros de Reginald Marsh, tanto quanto a reconstituição de cenários em estúdios europeus, bem como a utilização de cenários no Velho Continente para emular os espaços existentes na Nova Iorque dos anos 20 e 30.
O que faz de Once Upon a Time in America uma obra seminal é a forma como a memória cinéfila e a memória histórica se fundem para a concretização de um objecto puramente cinematográfico. Por outras palavras, a História mais não é do que uma ferramenta para a fixação de um imaginário que lhe é externo, da mesma forma que a História foi primeiramente apreendida por Leone e por toda uma geração de cinéfilos europeus através dos filmes norte-americanos observados. É, então, uma relação simbiótica a exercida entre o cinema e a História neste contexto particular, indo beber também à experiência do cineasta. No fundo, é como se Leone concordasse com George Steiner, quando este, no seu No Castelo do Barba-Azul[2], escreve: “Não é o passado literal que nos governa, excepto, talvez, numa acepção biológica. São as imagens do passado: com frequência tão intensamente estruturadas e tão imperativas como os mitos. As imagens e as construções simbólicas do passado encontram-se impressas, quase à maneira de informações genética na nossa sensibilidade.” Em Once Upon a Time in America, genética e imagética do passado unem-se exemplarmente. Nada de surpreendente, tendo em conta que o passado e os seus efeitos são o cerne da obra.
[2] STEINER, George: No Castelo do Barba Azul – Algumas Notas Para a Redefinição da Cultura, Relógio de Água, colecção Antropos, tradução de Miguel Serras Pereira, Sta. Maria da Feira, 1992, pp.13
Etiquetas: Ensaio
2 Comentários:
adorando
muito bem observado.
trazer as palavras de Steiner para a discussão enriqueceu ainda mais o texto.
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial