Os abestos de ponta prateada e as ervas daninhas
Na sua relação com a América, para onde fugiu aquando da Segunda Guerra Mundial, Douglas Sirk fez sempre figura de médico legista, a dissecar um ideal há muito morto e enterrado. Esse ideal, o de uma sociedade igualitária, próspera material e espiritualmente, pacífica externa e internamente, está morto, por exemplo, no brilhante e devastador Imitation of Life (1959), onde a temática do racismo, juntamente com o lado doloroso do sucesso desmedido, são um retrato da abertura de feridas que dificilmente poderão ser saradas. E está presente neste All That Heaven Allows (1955), pujante retrato, curiosamente, não das permissões celestiais dadas pelo título, mas sim de tudo aquilo que o céu terreno da “small town” norte-americana veda aos seus habitantes.
E aquele technicolor, e o azul da escuridão…
Cary Scott (excelente Jane Wyman) é uma viúva da cidade de Stoningham, esbelta e mãe de dois filhos. Sedenta de amor, apaixona-se por Ron Kirby (inadjéctivavel Rock Hudson), um exemplo concreto da Liberdade, tranquilo na assumpção da sua maneira de ser e dos seus objectivos – o par já se tinha encontrado, no “menor” Magnificent Obsession (1954), também realizado pelo alemão. Mas Cary é cobarde. A pressão dos seus pares, juntamente com a forte pressão dos seus filhos, Ned e Kay, faz desabar o sonho de ambos, uma vida pacata num remodelado moinho. Por um lado, a cidade é um ninho de víboras, prontas a sugar o sangue das suas vítimas se isso der motivo de conversa para mais umas semanas. Por outro, os seus filhos, o patriarcal Ned e a intelectual Kay, sempre pronta a mostrar bom senso mas presa ao que os outros dizem, castram todos os seus movimentos menos convencionais.
E depois há aquele technicolor, e a beleza das folhas das árvores…
Na sua essência, All That Heaven Allows é a história de uma mulher que, entre o despoletar da sua independência e a sua concretização plena enquanto ser humano, cede à pressão dos seus pares (incluindo a da sua melhor amiga, Sara Warren, interpretada pela excelsa Agnes Moorhead – Citizen Kane, 1941 e The Magnificent Ambersons, 1942) e aceita ser emparedada viva, à maneira egípcia, como um dos pertences do seu falecido marido. Mas é um filme que, exceptuando a aparição regular de um veado a marcar a vida no meio do manto de neve, se desenvolve através de um pudor extremo e algo raro na obra do cineasta. Por aqui, não existe a explosão sentimental do final de Imitation of Life, nem tão pouco o início desesperado ou o final apoteótico na sala do tribunal de Written in The Wind (1956). Inclusivamente, em certos momentos, o pudor eleva-se ao ponto de a protagonista ser mostrada a sofrer de costas para a câmara. Com a rejeição do amor limitado que a sociedade permite a alguém como Cary, vem uma deliciosa inversão de papéis: com o acidente quase mortal de Ron, é Cary que tem de se impor e de ser independente. Nesse momento, como noutra lindíssima história de amor, há uma aurora. E este torna-se também um filme lindíssimo sobre um amor, uma árvore que, para crescer, teve de deixar de se preocupar com ervas daninhas. Lindíssimo.
Como se tudo isto não bastasse, há a mais perfeita utilização do technicolor.
Etiquetas: Impressões
4 Comentários:
Belo texto. Este é um daqueles casos engraçados em que filmes que eram gozados pela intelectualidade da altura, por parecerem melodramas para donas-de-casa, se vem a descobrir que são obras-primas.
Ao contrário de ti, acho este "All That Heaven Allows" superior ao "Imitation of Life", precisamente por esse pudor de que tão bem falas. As explosões do "Imitation of Life" incomodam-me um pouco, não deixando, porém, de ser um grande filme.
Mas a contenção deste "All That Heaven Allows" arrebata-me completamente. Aliás, a mestria de Sirk revela-se, precisamente, no como contar a história (que é banal, batida). Todo esse pudor, o que não se mostra, aquilo que é dito pelas expressões dos magníficos actores principais. Apetece dizer que uma mentalidade germânica fria, que olha de fora como dizes, se encaixou perfeitamente na linguagem do cinema clássico americano - e dos Sirk que vi, parece-me ser este filme que comprova isso de forma brilhante.
Deixa-me referir o "Far From Heaven" (Todd Haynes, 2002). Aquém de "All That Heaven Allows", é, no entanto, um remake fabuloso. O assumir do pastiche, mudando aqui e ali temáticamente, faz com que nos deparemos com um filme moderníssimo. Não me alongando para já muito mais, o que me dizes?
Abraço
Olá, Daniel:
- começando pelo fim, não vi "Far From Heaven", logo não posso comentar;
- acho que tens toda a razão ao apontar a fraqueza do argumento, bem como a frieza germãnica de Sirk. Acho que o filme não poderia ser o que é não fossem esses dois factores, dado que, respectivemente, forçaram o cineasta a encontrar uma forma de filmar que transcendesse essa falta de originalidade, e o fizeram ver para lá da semãntica limitada do argumento, rumo ao societal;
- quanto a "Imitation of Life", é o meu preferido, precisamente por essas explosões emocionais de que falas. É o que uma telenovela deveria ser, não fosse o calculismo de quem as faz e a tacanhez do prime-time. É, no limite, um filme que não tem medo do ridiculo, e que está bem com o seu sentimentalismo.
Take Care,
Miguel Domingues
Miguel, junta o "Far From Heaven" aos outros 7. Sendo "All That Heaven Allows" um filme que adoras, a discussão sobre os dois será profícua.
Abraço
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