segunda-feira, agosto 28, 2006

Os abestos de ponta prateada e as ervas daninhas


Na sua relação com a América, para onde fugiu aquando da Segunda Guerra Mundial, Douglas Sirk fez sempre figura de médico legista, a dissecar um ideal há muito morto e enterrado. Esse ideal, o de uma sociedade igualitária, próspera material e espiritualmente, pacífica externa e internamente, está morto, por exemplo, no brilhante e devastador Imitation of Life (1959), onde a temática do racismo, juntamente com o lado doloroso do sucesso desmedido, são um retrato da abertura de feridas que dificilmente poderão ser saradas. E está presente neste All That Heaven Allows (1955), pujante retrato, curiosamente, não das permissões celestiais dadas pelo título, mas sim de tudo aquilo que o céu terreno da “small town” norte-americana veda aos seus habitantes.

E aquele technicolor, e o azul da escuridão…

Cary Scott (excelente Jane Wyman) é uma viúva da cidade de Stoningham, esbelta e mãe de dois filhos. Sedenta de amor, apaixona-se por Ron Kirby (inadjéctivavel Rock Hudson), um exemplo concreto da Liberdade, tranquilo na assumpção da sua maneira de ser e dos seus objectivos – o par já se tinha encontrado, no “menor” Magnificent Obsession (1954), também realizado pelo alemão. Mas Cary é cobarde. A pressão dos seus pares, juntamente com a forte pressão dos seus filhos, Ned e Kay, faz desabar o sonho de ambos, uma vida pacata num remodelado moinho. Por um lado, a cidade é um ninho de víboras, prontas a sugar o sangue das suas vítimas se isso der motivo de conversa para mais umas semanas. Por outro, os seus filhos, o patriarcal Ned e a intelectual Kay, sempre pronta a mostrar bom senso mas presa ao que os outros dizem, castram todos os seus movimentos menos convencionais.

E depois há aquele technicolor, e a beleza das folhas das árvores…

Na sua essência, All That Heaven Allows é a história de uma mulher que, entre o despoletar da sua independência e a sua concretização plena enquanto ser humano, cede à pressão dos seus pares (incluindo a da sua melhor amiga, Sara Warren, interpretada pela excelsa Agnes Moorhead – Citizen Kane, 1941 e The Magnificent Ambersons, 1942) e aceita ser emparedada viva, à maneira egípcia, como um dos pertences do seu falecido marido. Mas é um filme que, exceptuando a aparição regular de um veado a marcar a vida no meio do manto de neve, se desenvolve através de um pudor extremo e algo raro na obra do cineasta. Por aqui, não existe a explosão sentimental do final de Imitation of Life, nem tão pouco o início desesperado ou o final apoteótico na sala do tribunal de Written in The Wind (1956). Inclusivamente, em certos momentos, o pudor eleva-se ao ponto de a protagonista ser mostrada a sofrer de costas para a câmara. Com a rejeição do amor limitado que a sociedade permite a alguém como Cary, vem uma deliciosa inversão de papéis: com o acidente quase mortal de Ron, é Cary que tem de se impor e de ser independente. Nesse momento, como noutra lindíssima história de amor, há uma aurora. E este torna-se também um filme lindíssimo sobre um amor, uma árvore que, para crescer, teve de deixar de se preocupar com ervas daninhas. Lindíssimo.

Como se tudo isto não bastasse, há a mais perfeita utilização do technicolor.

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4 Comentários:

Blogger Ricardo disse...

Belo texto. Este é um daqueles casos engraçados em que filmes que eram gozados pela intelectualidade da altura, por parecerem melodramas para donas-de-casa, se vem a descobrir que são obras-primas.

5:07 da tarde, agosto 29, 2006  
Blogger Daniel Pereira disse...

Ao contrário de ti, acho este "All That Heaven Allows" superior ao "Imitation of Life", precisamente por esse pudor de que tão bem falas. As explosões do "Imitation of Life" incomodam-me um pouco, não deixando, porém, de ser um grande filme.

Mas a contenção deste "All That Heaven Allows" arrebata-me completamente. Aliás, a mestria de Sirk revela-se, precisamente, no como contar a história (que é banal, batida). Todo esse pudor, o que não se mostra, aquilo que é dito pelas expressões dos magníficos actores principais. Apetece dizer que uma mentalidade germânica fria, que olha de fora como dizes, se encaixou perfeitamente na linguagem do cinema clássico americano - e dos Sirk que vi, parece-me ser este filme que comprova isso de forma brilhante.

Deixa-me referir o "Far From Heaven" (Todd Haynes, 2002). Aquém de "All That Heaven Allows", é, no entanto, um remake fabuloso. O assumir do pastiche, mudando aqui e ali temáticamente, faz com que nos deparemos com um filme moderníssimo. Não me alongando para já muito mais, o que me dizes?

Abraço

12:38 da manhã, agosto 31, 2006  
Blogger Miguel Domingues disse...

Olá, Daniel:

- começando pelo fim, não vi "Far From Heaven", logo não posso comentar;

- acho que tens toda a razão ao apontar a fraqueza do argumento, bem como a frieza germãnica de Sirk. Acho que o filme não poderia ser o que é não fossem esses dois factores, dado que, respectivemente, forçaram o cineasta a encontrar uma forma de filmar que transcendesse essa falta de originalidade, e o fizeram ver para lá da semãntica limitada do argumento, rumo ao societal;

- quanto a "Imitation of Life", é o meu preferido, precisamente por essas explosões emocionais de que falas. É o que uma telenovela deveria ser, não fosse o calculismo de quem as faz e a tacanhez do prime-time. É, no limite, um filme que não tem medo do ridiculo, e que está bem com o seu sentimentalismo.

Take Care,
Miguel Domingues

3:12 da manhã, agosto 31, 2006  
Blogger Daniel Pereira disse...

Miguel, junta o "Far From Heaven" aos outros 7. Sendo "All That Heaven Allows" um filme que adoras, a discussão sobre os dois será profícua.

Abraço

1:16 da tarde, agosto 31, 2006  

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