Em Parceria com o blog
Um Milhão de Estrelas
i) Comece-se por afirmar: em momento algum põe
The Departed em causa o PSSEC
(Processo de Secularização de Scorsese Em Curso). Mas, dentro dos filmes já secularizados, é sem dúvida um dos melhores, projéctil voraz coberto de estilhaços laminados.
ii) Falar de Scorsese, do ponto de vista formal, é falar sobretudo de dois componentes estilísticos: a montagem avassaladora e a flexibilidade dos movimentos de câmara. Com a primeira, Scorsese corta e dilacera; com a segunda, edifica. O cinema de Scorsese é, então, um curioso oximoro.
iii) Lembro-me de ter lido, aqui há uns tempos, que a repetição dos autores, algo caluniada por parte da crítica, era no fundo normal, porque resultante do mergulho do cineasta em si mesmo. Se
The Departed é muito, muito melhor do que, por exemplo,
Gangs of New York (2002), é porque o mergulho é de muito maior fôlego. Arriscando uma análise semiótica imperfeita, é o regresso à boa forma na estrutura narrativa em triângulo que caracteriza
Raging Bull (1980),
Goodfellas (1990) e
Casino (1995). Nesta estrutura, há uma linha ascendente de vértice inferior esquerdo ao vértice superior, e uma linha descendente do vértice superior ao vértice inferior direito. A base, ligação entre os dois pontos baixos (ligação entre entre os dois pontos mnais baixos, início e fim, do percurso das personagens), é onde se encontra o significado.
The Departed é exímio na aplicação desta estrutura.
iv) O ítalo-americano, católico exacerbado, é, ao mesmo tempo, cada vez mais desesperado. A religiosidade de Scorsese está cada vez mais próxima de um fatalismo onde o mergulho nas trevas, mais do que uma inevitabilidade, é desejável como escapatória. Procuram-se as trevas porque a espera é o pior. É, por assim dizer, uma visão anti-pascaliana: a austeridade de nada serve, mais vale aceitar a punição. E quando ela chega, é sangrenta, rápida e dolorosa.
v) Este será um filme de que nos lembraremos quando pensarmos nos tristes dias da Administração Bush. Exemplo: Alec Baldwin (nunca pensei que fosse tão bom actor), rindo como uma doninha, a dizer que adora a forma como o Patriot Act lhe facilitou a vida. Nesse aspecto, nota-se que o cineasta respeita muito mais aquele (Frank Costello, criação genial e demente de Jack Nicholson, figura nietschziana sem rei nem Deus) que cumpre a americanidade sem precisar de fatos Armani: tira o que quer, quando quer e como quer. Porque sabe que, na selvajaria da Pátria da Liberdade, nunca ninguém lhe dará nada. Desagregação moral? Nos dias que correm chama-se-lhe competitividade...
vi) Ao ver The Departed – e peço desculpa antecipada pela falta de classe da imagem – lembrei-me das alheiras de Mirandela. Como as boas alheiras de Mirandela, este é filme muito bom, na medida em que foi feito com restos muito bons.
Há uns anos, levei uma prima a ver Bringing Out The Dead. Gostou tão pouco que cheguei a temer pela minha vida. Agora, foi a minha namorada que confessou, depois da sessão, ter desejado sair a meio. Será o universo de Scorsese irremediavelmente masculino?