segunda-feira, outubro 30, 2006

Inquietação das Três da Manhã - IV

Teresa Villaverde. João Canijo. Pedro Costa. Universos pessoais, estimulantes, estilizados. Longe de perfeitos, mas sempre um passo à frente de tudo e de todos. O nosso problema, não é só termos cinema chato que ninguém vê (98 Octanas de Fernando Lopes). É também termos merda que, uma vez por ano, tem um milhão de entradas vendidas. E, sobretudo, não sabermos tomar estas três partes pelo enorme todo que são.

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Do cinema de Teresa Villaverde, não se espere nunca nada de emocional. É um cinema frio, calculista, sempre em busca de novas e inovadoras formas de encenar conceitos abstractos. Em Transe, esse conceito é o Mal, do mesmo modo que em Os Mutantes era a Revolta. Mal físico e espiritual, entenda-se, união entre contrários concebida através do corpo e da mente.

Se o percurso de Sonia (Ana Moreira, a pedir que cada espectador olhe apenas para ela em duas horas de filme) é uma tentativa de transcendência (das dificuldades por que passam os países do Leste da Europa), também a forma deste filme pretende ser uma transcendência. Uma transcendência de quaisquer limitações formais, regras ou limites da verosimilhança – a sequência da escravatura sexual num lar pasoliniano (haverá mesmo gente a passar por aquilo?). Nesse aspecto, toma a dianteira a prodigiosa sequência no bordel, completamente depurada, a um tempo kitsch e brechtiana. Elíptico como não se imaginaria da cineasta depois da crueza do filme de 1998, resulta também de uma ideia de percurso subjacente à progressão narrativa: aquilo que no início era uma história simples, localizada, com o “pathos” de um filho afastado a conferir densidade à personagem da actriz portuguesa, torna-se, no limite, numa viagem que, no desespero de casa de má fama e no escuro de contentores, abstrai o percurso de muita e muita gente. É, então, uma transcendência da história de uma pessoa num conceito, num caso particular que emula toda uma realidade. E que, num processo análogo, transforma todos os proxenetas, exploradores e traficantes em exemplos desse Mal absoluto.

Num filme assim, ainda por cima iniciado na Rússia, a sombra tutelar é a de Andrei Tarkovski (não o da seca de Solaris, mas o do sublime Stalker) – a cena da camada de gelo a quebrar-se e a revelar uma massa de água, toda em “contra-plongé” e longuíssima, é disso exemplo cabal. Mas é mais, muito mais do que isso: imperfeito e rugoso, é um cinema que não cede perante nada, e não desarma das suas regras herméticas. Por muito “difícil” que seja, ignorem-no e depois venham dizer isto e aquilo sobre o péssimo cinema que temos.

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sexta-feira, outubro 27, 2006

Aviso à navegação

O sistema de moderação de comentários no meu blog não tem como objectivo qualquer censura. Pelo contrário, visa expelir o lixo que muitas vezes é deixado na caixa de comentários dos blogs (anúncios a bancos, prostíbulos, etc.) e impedir que algum engraçadinho, sob a proteção do anonimato, deixe algum tipo de impropérios para aqui serem lidos. Nunca censurei, nem tenciono fazê-lo, qualquer opinião, por muito contrária que seja à minha.
Acontece que, há alguns dias, o sistema de aprovação de comentários do Blogger foi abaixo no preciso momento em que aprovei os comentários do Francisco Mendes e do Peeping Tom. Serve, então, este post para me desculpar pelas idiossincrasias do meu servidor, e para lhes agradecer a participação, que espero que continue. Quanto a esses comentários, se os quiserem reproduzir, agradeço.

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O meu DocLisboa

O DocLisboa é, por assim dizer, diferente de outros festivais (nomeadamente o IndieLisboa) em termos de ambiente. Talvez por já se ter imposto e por já estar na quarta edição, não há, pelo menos nas sessões a que fui, a febrilidade e o entusiasmo que há no outro festival lisboeta.
O que, por sua vez, não significa que não tenha sido um sucesso tremendo esta edição de 2006, como o atestam as sucessivas sessões esgotadas, por exemplo, no período da tarde. Este é um festival consolidado, e cujos espectadores se dividem entre os convertidos, tranquilos no seu percurso pelos filmes, e os iniciados, que se adaptam imediatamente à calma e sofisticação deste festival, no que muito ajudam as extraordinárias instalações da Culturgest.

O meu percurso começou com Mysteryon (1991), primeira parte de uma trilogia dedicada a questões religiosas da autoria da finlandesa Pirjo Honkasalo. Mostrando o percurso iniciático de uma jovem candidata a freira juntamente com as celebrações religiosas que pautam o dia-a-dia das freiras de convento na Estónia, é um filme lento e arrastado, que tenta perscrutar por detrás da rotina do convento e penetrar as motivações de quem faz da fé a sua vida. Não o consegue, e sobram apenas um conjunto de vinhetas sem particular interesse,à excepção de mostrar que as feridas espirituais das candidatas são tantas que estas optam por ir para um sítio onde essas feridas doam menos e não se possam expandir. Nem a curiosidade de ter sido filmado em condições muito adversas, ainda durante a existência da URSS (numa época em que as associações religiosas de qualquer tipo eram proibidas), lhe conferem estatuto maior que a curiosidade.




O Japão merece uma atenção especial em 2006 com a retrospectiva “Histórias Mínimas – O Documentário Japonês Contemporâneo”. E história mínima, do ponto de vista estético, é o que se pode dizer de The Cheese and The Worms, documentário caseiro e doméstico de Kato Haruyo. Durante hora e meia, acompanham-se dois momentos muito especiais na vida da realizadora: a morte de sua mãe e o período subsequente. Tocante retrato da doença, é um filme simultaneamente carinhoso e lúcido, que filma a vida quotidiana (em câmara digital). É impressionante a tranquilidade zen com que, no velório, filma o corpo da mãe como se estivesse grata por tudo o que a progenitora fez por ela, do mesmo modo que, já antes, tinha filmado o calvário físico da mesma com uma enorme sensação de partilha. Ademais, as crianças, sobrinhos da cineasta, estão sempre por lá para nos lembrar da eterna continuidade da vida. No final, quando a avó de noventa anos vê o filme que mostra os últimos tempos da filha, percebe-se: aquele é somente um “home movie” que, não sendo nada de extraordinário cinematograficamente, deixa um conforto na alma a todos os que o vêem.




O mesmo conforto que Logo Existo, da portuguesa Graça Castanheira, deixa. Como homenagem à sua mãe, a quem um Acidente Vascular-Cerebral mudou completamente o feitio, a realizadora foi à procura de outras pessoas afectadas por esta doença. Duas pessoas (um actor teatral e, segundo creio, uma contabilista) que tentam ultrapassar a sua nova condição, tudo filmado de uma forma sentimental mas nunca melosa. É um filme reconciliador, porquanto nos mostra a luta contra as dificuldades que todos os humanos têm de travar.




Outra amostra há de uma enorme saúde no documentário português: Cartas a Uma Ditadura, de Inês de Medeiros faz das suas fraquezas forças. Por um lado, um dispositivo banal, centrado em depoimentos, em imagens de arquivo, em sons da época. Por outro, uma pungente radiografia, com a precisão do grande jornalismo, de um tempo em que o medo se travestia de esperança. Através do achamento de um baú de cartas a responder ao chamamento de uma associação de mulheres pró-salazaristas, o que se vê é um país assustado, passivo, conivente, ignorante e cioso da sua paz. Os problemas que se entrevêem neste filme são comuns aos dias de hoje – e o kitsch também: é brilhante o momento em que uma carta define a candidatura do General Humberto Delgado como “um vendaval satânico”.




Improvavelmente, o que esta pequeníssima selecção trouxe de melhor foi o sempre tão fustigado cinema português. Mas esta foi também uma edição marcada pelo estado do mundo, com documentários sobre a prisão da Baía de Guantanamo e o mundo empresarial. Esta pequena amostra, ainda que centrada numa importantíssima componente humana, não é nem por sombras significativa do programa do festival. Mas, no desbravar de vários aspectos da natureza humana, o DocLisboa é um evento fundamental. A passagem pela Culturgest foi, sem qualquer dúvida, muito recompensadora.

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terça-feira, outubro 24, 2006

we're not gonna take it


O que distingue a nova geração do cinema americano é o seu humanismo. Efeitos especiais de lado, política em repouso, várias décadas de cultura pop a sustentá-los, são cineastas que percebem como ninguém a perda e a solidão. São, em última instância, os despojos destes dias do país em que vivem, nerds que se vingam artisticamente mas que nunca abandonaram a noção de diferença que os percorreu toda a vida e que é comum a toda uma geração de espectadores. Depois de Coppola, Jonze, Russell e Gondry, Jonathan Dayton e Valerie Faris juntam-se ao clube com este lindíssimo Little Miss Sunshine.

A melhor imagem que tenho, infelizmente, não está ao nível do filme. Ao vê-lo, lembrei-me imediatamente de Dee Dee Snider e os seus míticos Twisted Sisters. Essa banda, uma das piores de toda a década de oitenta, teve um grande sucesso com uma canção intitulada We’re Not Gonna Take It. É disso que fala Little Miss Sunshine, de pessoas que se cansam de levar nas orelhas e decidem assumir-se e aceitar-se como são. Filme independente sob a égide do road movie, é uma prodigiosa viagem de criação de um grupo, de união de pessoas que no início de família só tinham o nome, e acabam por preencher perfeitamente essa designação.




Como a maioria destes novos realizadores, a comédia acaba por ser o reforço dos problemas existenciais que aqui são tratados. Desconstrução da psicose americana (e, diga-se, mundial…), é um gigantesco fuck you ao mundo, a essa vontade de ganhar que se torna grotesca na sequência do concurso de beleza. Não sei dizer muito sobre este filme, mesmo que ainda falte gabar o modo escorreito como é filmado, o muito coeso grupo de actores (Steve Carrell à cabeça, a tornar-se o novo William H. Macy, rosto do falhanço do americano médio), ou a genial sequência final, ao som de Superfreak. Sei que, durante uma hora e quarenta minutos, senti orgulho em não pertencer ao ideal comum de sucesso dos tempos que correm. Deve ser a isso que chamam catarse.


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quinta-feira, outubro 19, 2006

Aquilo que andei a fazer nos últimos dias

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O próximo filme que vou ver

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À espera que a Cinemateca se decida (2)

... e este é outro.

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À espera que a cinemateca se decida (1)

Este é um dos que não vi e quero ver...

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Como sou um gajo original...

...vou aqui pôr uns videos do YouTube, de quando em vez. Começo por um dos mais belos momentos que o cinema nos deu.

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quarta-feira, outubro 11, 2006

Museu De Cera Em Carne Viva



i) Sobre Brian De Palma, há algo que nunca é suficientemente referido: primando sempre pela experimentação formal, a sua obra nunca primou pela regularidade criativa. Obras brilhantes como Carrie (1976) e Os Intocáveis (1990) coabitam com filmes menores como Mission to Mars (2000) e Femme Fatale (2002), gigantescas estátuas de gelo, belíssimas por fora e gélidas por dentro.



ii) The Black Dahlia é o melhor filme de Brian De Palma. Não houve outro assim e dificilmente haverá na sua carreira. Partilha, é certo, o meandro cinematográfico com Body Double (1984 - embora nesse caso se tratasse do cinema de baixo orçamento e do cinema pornográfico), mas dota-o de uma pulsão existencial ausente daquele, que inclusivamente aumenta à potência dez a “malaise” do “film noir” tradicional. Aquilo que em Double Indemnity (Billy Wilder, 1944) ou The Big Sleep (Howard Hawks, 1946), para citar apenas dois títulos, aflorava constantemente, é aqui uma luz estroboscópica a cegar todas as personagens. O "film noir" é o filme de fantasmas por excelência, e De Palma explica-o como ninguém.

iii) A relação de The Black Dahlia com o venerando género cinematográfico é sempre, dupla: por um lado, a enumeração dos elementos constituintes do género (a loura platinada, a morena demoníaca, a narração em voz-off, etc.) é rigorosa, tornando o filme numa espécie de museu de cera em carne viva. Porque nunca deixa de preencher essas estátuas com veículos humanos, cujo principal defeito é serem (para citar o titulo de um dos seus filmes) perseguidos pelo passado. Por outro lado, há sempre o comprazimento por parte de De Palma em ampliar todos os traços marcantes do "film noir", quer como modo de suplantar as limitações impostas pelo código Hays (a maior liberdade na linguagem e na representação sexual), quer com a intenção de relevar pontos essenciais do género à maneira ensaísta. Como em todos os “movie brats”, o espectador mistura-se assaz sagazmente, com o crítico.



iv) Ainda assim, o que vence realmente o filme é o domínio da estética por parte do cineasta. A câmara para De Palma é uma verdadeira caneta, capaz de desenhar movimentos perfeitos e fáceis, que dão ao filme o flutuar de um pesadelo. Essa sensação de pesadelo é ampliada pela progressão narrativa, descida aos Invernos cujo final relativamente feliz mais não é do que, como nalgum cinema clássico americano, um paliativo para a violência do que se acabou de mostrar. No final existem apenas os fantasmas de Hollywood, uma história de glamour escrita a sangue e loucura. É, no limite, uma espécie de Mulholland Drive em tons de policial negro. Brilhante.


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segunda-feira, outubro 09, 2006

O Scorsese Secularizado




A estreia de The Departed, o último filme de Martin Scorsese, aproxima-se a passos largos. Nos Estados Unidos, multiplicam-se as análises ao novo filme (Village Voice e The New York Times, para citar apenas dois exemplos). Análises essas que, a bem dizer, não li, pois sou contra ler-se críticas “a priori”. Podem ser, mesmo que sub-repticiamente, influentes em análises futuras. De qualquer modo, chegados a este ponto, creio que importa fazer um ponto de situação da carreira do mestre nova-iorquino.




A carreira de Scorsese entrou na sua fase auto-referencial aquando de Bringing Out The Dead, até ver, o último grande Scorcese. Que é também o mais pequeno dos grandes scorseses. Porque se Casino (1995) representava um regresso ao passado, quer na escolha do duo Robert De Niro/Joe Pesci e na adaptação de uma obra de Nicholas Spilleggi, o mesmo de Goodfellas (1990), fazia-o acrescentando elementos à sua obra. Nunca o italo-americano foi tão longe no explanar gráfico da violência, nem na voracidade típica do seu cinema, que se aproximava de um comboio prestes a descarrilar. E descarrila mesmo, na segunda metade do filme.
Em Bringing Out The Dead (1999), o elemento cumulativo face à obra feita não existe. É um filme perfeito, feito por quem sabe, sobre aquilo que sabe. Mas é sintomático que muitos críticos, á época, tenham apelidado o filme de Ambulance Driver. Restam alguns dos momentos mais belos da carreira do cineasta, como aquele em que Nicholas Cage segura um nado-morto nas mãos, ou aquele em que Tom Sizemore, possuído, destrói uma ambulância com um taco de basebol. Felizmente, esses grandes momentos, pura beleza demencial (será isto que Kant queria dizer com Sublime?) chegam para fazer deste filme uma obra de topo. Mesmo sendo o mais pequeno dos grandes scorseses.



Os três anos que separaram o filme acima referido de Gangs of New York (2002) foram convulsos. Problemas com os produtores, atrasos na rodagem, derrapagens orçamentais e rumores nunca confirmados de falta de entendimento entre os dois actores principais (Leonardo DiCaprio e o fulgurante Daniel Day-Lewis) tornaram as filmagens um pesadelo que deve apenas ser comparável à produção de New York New York (1977). Pior, o filme foi amputado de parte considerável da sua duração, o que lhe conferiu um aspecto algo fragmentado.
Scorsese será sempre, contudo, sinónimo de raiva. E a raiva com que filma e, sobretudo, monta Gangs of New York compõe as entranhas do seu filme de 2002. Mas trai, ao fazê-lo, um ar de “Martin Scorseses Greatest Hits” que enferma a obra não numa corrente autoral, mas num tom algo requentado. É um filme de um esteta, sem dúvida – são todos, no caso deste mestre –, mas de um esteta a quem foram cortadas as vazas. E o resultado final ressente-se disso.


The Aviator (2004) é um filme de que custa a muitos fãs do realizador falar. É o seu pior filme, o único que faz passar pela cabeça de um admirador a hipótese de o seu ídolo não ser divino. O facto de ser uma encomenda ajuda a este estado de coisas, mas de encomendas está o panteão scorsesiano cheio (The Last Waltz, 1978, Alice Doesn´t Live Here Anymore, 1974, etc.). É um filme de quem procura desesperadamente reconhecimento claro, e, pior do que isso, não o consegue – Óscares á cabeça. É um “biopic” com todos os traços tradicionais do “biopic”, superiormente filmado, mas ainda assim uma espécie de A Beautiful Mind de autor.



O Scorsese que encontramos antes de The Departed é um Scorsese secularizado: perdeu a sua dimensão divina, recriou-se á sua imagem, substituiu o espírito pela liturgia e abdicou da sua perfeição. O mais interessante que tem feito são os documentários (salvo o filme sobre Dylan, que é mais do bardo que do cineasta), e mesmo esses não escapam à noção de que o Touro amansou. Veremos o que traz o novo filme.

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sexta-feira, outubro 06, 2006

Horas na Cinemateca - IV


Nunca houve relação artística como a de Josef von Sternberg com Marlene Dietrich. Cada um dos sete filmes feitos entre ambos é um monumento à beleza da actriz, ao modo quase pós-moderno como usa a sua condição feminina enquanto meio de defesa e de ataque. E sobretudo, à forma como, por baixo dessa força, está sempre um ser humano complexo, pronto a que as suas sucessivas camadas sejam reveladas e homenageadas.

Dishonored (1931) não é excepção, mas também não está ao nível de outros clássicos do par, como The Blue Angel (1930), The Shanghai Express (1932) ou The Scarlett Empress (1934). Neste, Dietrich interpreta uma prostituta cujas qualidades de sedução são apreciadas pelo chefe dos serviços secretos do então decrépito Império Austro-Hungaro. Enquanto espia, denominada X-27, é incumbida de prender o Tenente Kranau (interpretado por Victor McGlaglen, conhecido da trilogia da cavalaria de John Ford), espião russo em terras austríacas. Valsa de morte, Dietrich está condenada desde o início, e o amor entre ambos serve apenas de música de fundo para essa dança.

É um filme difícil de gostar, e muito fácil de gostar. Difícil de gostar, porque está muito longe de ser escorreito, e até tem muitos momentos mortos. Inclusivamente, estas dificuldades de ritmo desbaratam uma das mais estimulantes ideias estéticas desta obra, os raccords em sobre-impressão que, mantendo a sensação de rio sem retorno do destino de Dietrich, não conseguem dar ao filme a fluência que lhe falta. Muito fácil de gostar, porque nele estão algumas das melhores sequências da parceria entre cineasta e actriz, desde o baile de máscaras que antecipa o barroquismo de The Scarlett Empress, à sequência em que a actriz alemã seduz um oficial russo enquanto "Heidi em tons de Lolita". Mas, sobretudo, é o filme da sequência final do fusilamento, em que Dietrich, rodeada de estilizados muros desenhados, a tentar esmagar qualquer noção de individualidade, vestida à prostituta – porque prefere lembrar-se dos homens que serviu a lembrar-se do país que serviu –, é um espírito livre a mandar à merda todos os que a tentaram limitar. É a sequência que melhor ilustra o título francês de um filme de Fassbinder : Prenez Garde à la Sainte Pute. É a melhor razão para ver e apreciar este filme.


Em 1954, entre La Carozza D’Oro e Elena et les Hommes, Jean Renoir realizou French Can-Can, filme que, glosando Truffaut, parece dizer A Vida é o Palco. Inspirado na história do fundador do Moulin Rouge, conta a história de Danglard (Jean Gaabin, com a facilidade e a competência típicas), charmoso pelintra, megalómano que necessita sempre do dinheiro dos outros para os seus projectos. Depois do falhanço de vários dos seus projectos para clubes nocturnos, com os mais variados números para entreter os clientes, a descoberta de uma bailarina do povo chamada Nini, com quem se envolve sentimentalmente, tem a ideia de construir um espaço que revitalize o can-can, e onde se possa pagar perigo, excitação e sedução a preços competitivos.

Não sendo um Renoir de topo, não deixa de ter presente o humanismo que faz parte das suas obras, e a galeria de personagens populares que povoam este filme é, em tom e em variedade, riquíssima. O cerne da obra está, contudo, na Eterno Retorno de paixão, de trabalho, de nervos e e zangas que estão por detrás dos espectáculos montados. Esse Eterno Retorno é a vida dos seus participantes, e compreender esse estado de coisas faz parte do auto-conhecimento das personagens. Para que, de quando em vez, uns possam receber os aplausos do público, e outros possam sentar-se nos bastidores e desfrutar do sucesso. Em breve, tudo começará de novo…

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quinta-feira, outubro 05, 2006

Para Quem Insiste em Não Compreender Miami Vice


"I consider Michael Mann to be visually the most gifted active film-maker. Heat is a film which impresses me. It impresses me that they can make such film in the context of the American cinema. It is a film subject of which is form, and it is can be my taste for the abstraction and plastic arts which expresses itself. I find that there is a modern, contemporary transposition, of this stylistic purity, which is something that I always search in the cinema."

Olivier Assayas

(via The Last Picture Show)

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segunda-feira, outubro 02, 2006


Lady in The Water é um filme triste. M. Night Shyamalan, nas suas três anteriores longas-metragens, tinha traçado um percurso ascendente. Havia uma solidez muito óbvia em The Sixth Sense (1999) e em Unbreakable (2000), que culminava na excelência de Signs (2002) e na complexidade de The Village (2004). Tudo isso é desbaratado neste seu quarto filme, em que um enredo em que a fantasia se confunde com irrealismo e onde o final é acelerado ao ponto do desmoronamento.


Shyamalan continua a avaliar com precisão o momento actual do mundo. E, no meio da guerra que preenche o espaço mediático, quis decerto implementar uma fábula esperançosa, que invertesse o estado de espírito contemporâneo. Mas não consegue nunca instalar a suspensão da descrença que deveria ser o motor do filme. Pior, não há nenhum momento particularmente marcante. É irrelevante, mesmo naquilo que diz sobre o mundo actual. E irrelevante ele nunca tinha sido. É pena.


* É estranho, mas sinto-me sempre mais à vontade a criticar um filme de que gosto do que um de que não gosto. Será que, ao contrário do que se diz por aí, dizer bem é mais fácil do que dizer mal?

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domingo, outubro 01, 2006

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Já que ninguém pegou nesta minha citação de M.S. Fonseca, pego eu, apenas para dizer duas coisas:


i) negar o lado artístico dos cineastas americanos é uma patetice. Cassavettes não era um artista? Griffith não era um artista? O zénite de um certo cinema americano, Cecil B. DeMille, não era um artista? Patetice das grandes.


ii) Esta questão parece-me estar intimamente ligada com a questão do género cinematográfico. Mas o facto de não este não permitir um lado que pareça, de forma transparente, "artístico", pela simples inclusão num "costume" (à falta de melhor termo), é o que possibilita o sucesso comercial atingido por algum cinema americano. Um filme americano é frequentemente mais fácil de ver que um de outra proveniência. E a permanência dos códigos de um género de filme para filme é o cerne dessa "facilidade".

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Duplo Padrão

Depois de deixar de aceitar o King Card nos seus cinemas, o grupo Medeia decidiu lançar o seu próprio cartão de cinema – o Medeia Card, a funcionar exactamente nos mesmos moldes que o primeiro cartão funciona. Preza-se a originalidade da iniciativa, mas a questão vai além da concorrência desleal avançada por Hugo Alves. É um duplo padrão: se ambos os grupos se diferenciassem de forma tão afincada em termos de exibição quanto se querem diferenciar em termos de marketing, a exibição cinematográfica em Portugal seria bem melhor. Basta ver as partilhas de filmes entre os dois grupos.

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